Webinário defende autonomia do país no uso de dados, infraestrutura digital e ciberespaço

Webinário defende autonomia do país no uso de dados, infraestrutura digital e ciberespaço

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A transformação digital sustentada por um projeto social pautado pelo direito à saúde, pela democracia e pela equidade, com valorização do controle social, foi defendida nas exposições dos participantes do sexto webinário da série Transformação digital da saúde pública, que teve como tema o colonialismo digital e a soberania tecnológica. Conforme pontuaram em suas falas, a tecnologia, em si, não é segregadora, podendo ou não servir a um modelo de governança democrático.

O evento reuniu o sociólogo Deivison Faustino, professor da Universidade Federal de São Paulo e do Instituto Amma Psique e Negritude; a pesquisadora titular da Fiocruz e integrante do GT Informação em Saúde e População da Abrasco Ilara Hämmerli; e Luiz Vianna Sobrinho, doutor em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva pela Ensp/Fiocruz e pós-doutorando no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), com apresentação do coordenador do CEE-Fiocruz, Rômulo Paes de Sousa, e mediação da pesquisadora do Centro, Sônia Fleury.

“Nós temos um contexto desafiador, tecnologias disruptivas crescentes, alterando substantivamente o nosso modo de vida em todos os aspectos, ou pelo menos da grande maioria da população do planeta, e, ao mesmo tempo, uma enorme dependência, que alguns autores chamam de um novo feudalismo, pela concentração de poder econômico e político nas grandes empresas de tecnologia no mundo. Então, este é um tema fundamental”, observou Rômulo, ao abrir o webinário.

“Não podemos abrir mão dessa tecnologia, essa é a questão. Como incorporá-la como parte de uma reforma sanitária digital?”, indagou Sonia Fleury, mencionando um conceito utilizado por Luiz Vianna, conforme informou. “O que seria isso? Reviver a Reforma Sanitária, dentro do contexto da digitalização, em que não houvesse ameaças à privacidade dos cidadãos, ao controle social no SUS, e aumentasse a soberania e o acesso à informação, em um modelo de governança democrático da área da Saúde”, definiu.
 

Reatualização de lógicas coloniais: poder, dados e desigualdade

Em sua exposição, o sociólogo Deivison Faustino, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisador do Instituto Amma Psique e Negritude, propôs uma reflexão crítica sobre os impactos sociais, econômicos e éticos das novas tecnologias no cuidado à saúde. “O debate sobre tecnologia é sempre um debate sobre sociedade, a própria separação entre tecnologia e sociedade já é um equívoco”, afirmou.

Para ele, os meios técnicos “carregam as contradições de cada época”. Como observa, em especial, em relação à área da Saúde, as tensões se intensificam com a chegada das tecnologias digitais. “Essas tecnologias nos instigam a revisitar antigos debates da Saúde Coletiva, como a relação entre saúde e sociedade, ou entre tecnologia e cuidado”, considerou.

Segundo o sociólogo, vivemos um momento de grandes transformações e aceleração nas descobertas e inovações. Embora isso amplie possibilidades, avalia, também impõe desafios que impactam diretamente os modos de vida e, consequentemente, as formas de produzir saúde. “Se não houver um grande debate sobre as implicações das tecnologias no cuidado e saúde, facilmente tenderemos a substituir noções ricas de cuidado por uma noção automatizada”, alertou.

Deivison destacou o papel central do SUS como um sistema que, desde a Constituição de 1988, estabelece a saúde como direito. “Pensar a saúde digital, portanto, se levarmos o SUS a sério, implica não pensar só nas necessidades do mercado, mas se perguntar se cada nova tecnologia atende ou não à prerrogativa de que a saúde é um direito e não uma mercadoria”, pontuou.

Ele também chamou atenção para a ausência de regulação sobre dispositivos digitais de saúde fora do âmbito do SUS. “Teremos que parar tudo e discutir o que está acontecendo e como poderemos nos posicionar para que essas transformações sejam, de fato, colocadas a serviço da saúde e não do mercado”.

Na sequência, o sociólogo destacou cinco pontos ligados ao conceito de colonialismo digital. Baseando-se no sociólogo sul-africano Michael Kwet, ele definiu o termo como “o uso da tecnologia para a dominação política, econômica e social de outra nação”. A concentração de poder por parte das big techs, majoritariamente sediadas nos Estados Unidos, seria, segundo Deivison, um dos pilares dessa lógica.

Para o professor, as big techs vêm exercendo controle global por meio de dados, infraestruturas e algoritmos, reatualizando lógicas coloniais. “Essa concentração não é só econômica, é também política”, enfatizou, ao comparar o domínio atual ao controle exercido por impérios europeus no século XIX com os cabos de telégrafo.

O segundo ponto abordado foi a “acumulação primitiva de dados”. Conforme observou Deivison, os dados, especialmente os de saúde, tornaram-se uma nova matéria-prima, comparável ao petróleo. “O dado agora não é elemento secundário de um processo, ele passa a ser o objetivo de qualquer processo”, considerou, pontuando que essa lógica transforma saberes, territórios e até corpos em mercadoria. “Aquilo que Marx chamava de acumulação primitiva de capital, que converte os meios de vida em capital, expropria a terra indígena, expropria saberes, e transforma o que é coletivo em algo privado para ser comercializado”.

O sociólogo trouxe um terceiro ponto, relativo ao controle social, “muitas vezes negligenciado no debate sobre saúde digital”. Deivison destacou que os grupos mais vulneráveis, que mais sofrem com as contradições do processo, são frequentemente excluídos dessas discussões. “É como se a digitalização da saúde fosse um debate de programadores e não um debate com implicações sociais das mais diversas”, disse.

O quarto ponto, indicou, diz respeito à automação do cuidado. “O que acontece quando começo a transferir processos de cuidado para mecanismos automatizados?”, indagou, alertando para o risco de essas tecnologias reforçarem desigualdades, ao serem programadas com base em realidades sociais específicas.

Por fim, um quinto ponto referiu-se à “racialização codificada”, também chamada de racismo algorítmico. Deivison explicou que sistemas automatizados de saúde são calibrados com dados que refletem realidades muitas vezes excludentes. “A pergunta que pouco se faz é: qual a realidade social tomada como parâmetro para calibrar os processos automatizados em saúde?”.

Ele citou estudos que revelam, por exemplo, margens de erro maiores para pessoas negras em sistemas de reconhecimento facial, além de casos em que algoritmos priorizaram pacientes brancos menos graves em filas de transplante de órgãos nos EUA, em detrimento de pacientes negros, requerendo maior cuidado. “A máquina não é racista, a máquina responde aquilo a que foi programada”, afirmou.

“Pensar a saúde digital é pensar no potencial que ela oferece, mas, se não discutirmos seriamente os atravessamentos sociais desse potencial, quem vai se beneficiar é o mercado, com o risco de ampliar barreiras para as populações mais vulneráveis”, alertou.

“Pensar colonialismo digital é pensar geopolítica, é pensar design algorítmico, mas é pensar, sobretudo, desigualdades que nunca se resolveram e que agora nos ameaçam como algo que precisa ser levado em consideração nesse debate”, reforçou.

 

Pela ‘tecnodemocratização’ da produção de dados

Ilara Hämmerli buscou orientar sua análise pelos marcos referenciais da saúde coletiva e da Reforma Sanitária Brasileira, que deu origem ao SUS, conforme pontuou, propondo assumir a decolonialidade, como essencial para o Brasil e parte de uma “postura contra-hegemônica, para o enfrentamento político, ético e cultural do colonialismo digital e da dependência tecnológica”.

Para caracterizar o cenário em que vivemos hoje, a pesquisadora trouxe a imagem de um labirinto caleidoscópico, considerando que, além de um caleidoscópio, em seus padrões complexos e em constante mudança, temos “um labirinto não estático”, também se modificando. “Ao se tratar desse tema, temos uma diversidade de abordagens, de camadas, que a todo momento muda. E, ao mesmo tempo, estamos o tempo todo buscando uma saída desse labirinto”, comparou.

Conforme analisa a pesquisadora, enfrentamos uma “datificação da vida”, ou seja, uma transmigração da vida para dados, gerando, seja uma tecnoforia, seja uma tecnofobia. “Desvendar e compreender as interpretações entre um extremo e outro é tarefa coletiva das sociedades atuais”, considerou.

Ilara apresentou o que considera quatro dilemas. O primeiro, impactando diretamente a transformação digital no SUS, é o mito da neutralidade dos dados, das informações, dos algoritmos e da inteligência artificial. “Esse mito é alimentado pela despolitização e descontextualização, os dados apresentados como matéria-prima neutra que agrega valor a produtos e serviços de plataformas digitais, que passariam a ter desempenho melhor”, avalia. “Na realidade, sabemos que esses produtos e serviços são portadores de visões de mundo e vieses estruturais que ameaçam a privacidade, a emancipação, a cidadania e a democracia”.

Para enfrentar esse cenário, propôs, é necessária uma “tecnodemocratização do contexto da produção desses dados” – de onde surgiram, por que se apresentam de uma forma e não de outra, por que alguns dados são computados e outros não. “É fundamental enfrentar o “enigma do algoritmo”, disse, propondo, ainda, uma “bula algorítimica” para acompanhar editais e outros documentos.

O segundo dilema trazido pela pesquisadora refere à “ampliação dos dispositivos de biopoder”, pela agregação de imenso volume de dados dos indivíduos, extraídos das anamneses, que se tornam um dos principais ativos de um novo modelo de negócios – o extrativismo digital. “Observa-se a volúpia do capitalismo neoliberal pelo acesso tanto às bases de dados construídas pelo Estado, quanto na geração de captura direta”.

Um terceiro dilema relaciona-se à interoperabilidade entre sistemas e bases de dados sobre os cidadãos, que considerou, na verdade, “um simulacro de integração”. “As alternativas tecnológicas de interoperabilidade são necessárias, mas insuficientes para um salto de qualidade”, observou. “Por que persistir na concentração do investimento público em mecanismos que justapõem fragmentos de realidade, denominando-se isso de integração”, indaga, apontando uma “racionalidade fragmentadora”, que não dá conta de uma realidade complexa.

Um quarto dilema, ainda, se configura “entre a distopia e a utopia”, na construção de um projeto de país. “Esse webinário é um convite a isso”, destacou, indagando: “Qual modelo de atenção à saúde as transformações digitais irão fortalecer nas três esferas de governo, como lócus de intensa disputa entre interesses públicos e privados?”.

Para Ilara, há, hoje, três ideias em disputa no debate nacional. Uma delas seria a de um colonialismo digital explícito, assumindo que o Brasil será “um país consumidor da visão de mundo das big techs, do pensamento único, subalterno, pasteurizado, de valores culturais colonizados, e produtor de dados no contexto do capitalismo de dados e do extrativismo digital”.

A outra, seria a alternativa reformista, na direção de uma soberania relativa, apostando na regulamentação, mas “mantendo liames com conglomerados que dominam a globalização excludente e oligopolizada das big techs”.

Por fim, haveria também a alternativa da construção da soberania nacional pública – “lembrando, no entanto, que o próprio conceito de soberania também está em disputa” – relacionada à tecnodemocracia e à emancipação.

 

Soberania como projeto político: desafios e urgências no Brasil conectado

O pesquisador Luiz Vianna abriu sua fala alertando que é preciso pensar “a fragilidade da nossa soberania” neste momento em que o país se prepara para dois marcos políticos em 2026 – os dez anos do impeachment da presidenta Dilma Rousseff e uma nova eleição presidencial.

Ao fazer uma avaliação da conjuntura política brasileira, Vianna lembrou da participação de grandes grupos da mídia e das grandes redes sociais no processo que levou, em 2016, à interrupção de um ciclo de desenvolvimento nacional, e ao avanço da dependência tecnológica.

E em relação à próxima eleição, o pesquisador apontou para uma nova ameaça: a influência das grandes empresas de tecnologia, que “se anuncia dessa vez de forma ainda mais declarada, com a participação direta da estrutura e todo o apoio das big techs ao segmento de extrema direita nacional”.

O debate sobre soberania deve ser trazido “sob a perspectiva de domínio tecnológico”, diz Vianna, citando o sociólogo Sérgio Amadeu, destacado como referência nesse debate.

Nessa linha de pensamento, o pesquisador destacou que a soberania digital deve ser pensada como a capacidade do Estado-nação em controlar e tomar decisões de maneira autônoma, no que se refere a dados, tecnologias, infraestruturas digitais e ao ciberespaço.

Inspirado por experiências internacionais – em especial o modelo chinês –, ele argumentou, ainda, que a soberania digital deve ser pensada de forma multidimensional.

Ao traçar paralelos entre os modelos europeu, americano e chinês de soberania, Vianna ressaltou as contradições do Brasil. O pesquisador explicou que a Europa busca, ainda hoje, o equilíbrio e a procura de tratados organizativos e tratados de paz numa disputa de soberania dentro da ONU. Os EUA exercem domínio pela hegemonia tecnológica e militar e a China aposta em proteger o ciberespaço como outro espaço. “Nós temos as águas territoriais e o espaço geográfico, e eles pensam mais no ciberespaço e menos nas tecnologias, porque acham que a soberania tem que ser garantida no território de cada nação”.

O Brasil, segundo Vianna, segue indefinido — e o risco é “alugar” sua infraestrutura para interesses externos sem qualquer controle político ou jurídico efetivo.

Na área da saúde, o pesquisador criticou as propostas de digitalização sem projeto social. “Acho que projetos amplos que trabalhem sob as mesmas metas da Reforma Sanitária, pobreza e as questões sociais é que teriam que ser encampados novamente pela reforma sanitária digital, e não uma digitalização da gestão da saúde”.

Em vez disso, defende modelos que empoderem as comunidades e descentralizem o acesso à tecnologia, citando o projeto liderado por Wagner Martins na Fiocruz e as ações do MST como exemplos de soberania digital popular.

Ao final, citou o filósofo chinês Yuk Hui: “A soberania como força vital não existe; o que a torna poderosa é a tecnologia”. Para Vianna, o desafio central para o Brasil nos próximos anos é justamente esse: democratizar o poder tecnológico para que “nós tenhamos uma força interna para dar respaldo a essa recuperação da soberania. O ano 2026 está chegando, e eu desejo que a gente se prepare para ele”.