Um mundo que prioriza os gastos militares em detrimento do desenvolvimento sustentável
Em setembro de 2015, na 70ª Assembleia Geral da ONU, os chefes de Estado e de Governo subscreveram por unanimidade o maior desafio global: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável[1]. No seu preâmbulo afirma-se que a “Agenda é um plano de ação para as pessoas, o planeta, a prosperidade, a paz e as alianças” (os cinco pês). A Agenda aponta que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões continua a ser o principal objetivo global e o requisito essencial para o desenvolvimento sustentável, além de chamar a atenção para a necessidade de paz, de superação das desigualdades entre e dentro dos países e de proteção do planeta e dos seus recursos naturais. Quase nove anos depois, o mundo parece mais interessado na guerra do que nos objetivos que o uniu naquela Assembleia.
Prova disso é que, em 2023, os gastos militares globais foram 52 vezes maiores do que a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento (AOD). Como apontam os dados da publicação The Military Balance 2024[2] (IISS, 13/02/2024), os conflitos armados entre Rússia e Ucrânia e na Faixa de Gaza, entre outros, aumentaram os gastos da indústria e da defesa para níveis sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. O investimento em armas ascendeu a 10,9 bilhões de dólares, enquanto todos os desembolsos líquidos de créditos e donativos destinados a projetos de desenvolvimento atingiram apenas 2,10 bilhões de dólares.
No cenário atual, marcado pelo pós-pandemia, os compromissos globais para erradicar a pobreza; promover a segurança alimentar; promover o bem-estar para todos e em todas as idades; garantir uma educação inclusiva e de qualidade; promover a igualdade de género; garantir o acesso à água; a promoção do crescimento econômico inclusivo e sustentável e do emprego para todos, entre outros, não são consideradas prioridades pela maioria dos países na alocação de recursos.
A crescente importância assumida pela guerra e pela indústria armamentista na cena internacional é preocupante. É muito provável que o mundo continue a mudar nessa direção, com implicações importantes para a prosperidade de todos os países e para o agravamento da crise multidimensional que afeta a política, a economia e o ambiente. Perante essas circunstâncias, é importante recuperar o compromisso ético com o desenvolvimento sustentável e regressar à mensagem do papa Francisco, na encíclica Laudato Si[3] que nos chama a cuidar da Casa Comum.
O investimento em armas ascendeu a 10,9 bilhões de dólares, enquanto todos os desembolsos líquidos de créditos e donativos destinados a projetos de desenvolvimento atingiram apenas 2,10 bilhões de dólares
Francisco faz um convite para um novo diálogo sobre a forma como construímos o futuro do planeta, apontando que é necessária uma conversa que una a todos nós, porque o desafio ambiental que vivemos e suas raízes humanas nos interessam e impactam a todos, e, assim, destaca a necessidade de uma nova solidariedade universal.
O atual modelo de desenvolvimento gera exclusão, perpetua lacunas no desenvolvimento e é prejudicial ao planeta. O atual estilo de desenvolvimento e as regras de mercado baseiam-se numa falsa ética em que predomina o desejo de lucro, o que é insustentável do ponto de vista do bem-estar geral.
Não resolveremos os problemas éticos e a desigualdade gerados pelo atual modelo de desenvolvimento por meio de um regresso ao estado de natureza hobbesiano. As hostilidades e os conflitos armados nada mais fazem do que aumentar as desigualdades e o número de vítimas e de pessoas excluídas, ao mesmo tempo que nos distanciam da realização dos objetivos de desenvolvimento.
O papa Francisco salienta que é necessário abandonar a natureza individualista do homem moderno e a incapacidade de pensar nas gerações futuras. Neste sentido, como afirma a Agenda 2030, e a Laudato Si reafirma, as nações devem enfrentar “o desafio urgente de proteger a nossa casa comum… unir toda a família humana”, aos Estados, à sociedade civil, à academia e ao sector privado, na busca de um futuro baseado no desenvolvimento sustentável integral com o desafio de não deixar ninguém para trás, afirmação que ressoa como compromisso indesculpável.
* Uma primeira versão, mais curta, deste artigo, foi publicada, em espanhol, no jornal Clarin. Acesso: https://www.clarin.com/opinion/mundo-prioriza-gasto-militar-desarrollo-sostenible_0_dJ9hfkorZ7.html Tradução do autor
** Pesquisador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz); mestre e doutor em Saúde Pública pela Ensp/Fiocruz.
[1] A Resolução A/70/L1 é o resultado das negociações intergovernamentais na Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, realizada em setembro de 2015, em Nova York. A resolução, intitulada Transformando nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, contém a proposta da Agenda de Desenvolvimento 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e foi acordada pelos chefes de Estado e de Governo na 70ª AGNU, entre 25 e 27 de setembro daquele ano, na sede da Organização, em Nova York.
[2] https://www.iiss.org/publications/the-military-balance/
[3] Laudato si é o título da segunda encíclica do papa Francisco, assinada em 24 de maio, Solenidade de Pentecostes de 2015, e apresentada em 18 de junho do mesmo ano. É importante destacar que a Laudato si analisa os problemas do atual modelo de desenvolvimento e, é lancada no mesmo año que a Agenda 2030. Acesso: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html