Tânia Di Giacomo Lago: ‘Há um impedimento social para que a mulher conte sobre o aborto que realizou’
“Pelo conhecimento que utilizamos e pelos dados de internações e procedimentos decorrentes do aborto no SUS, podemos chegar a perto de meio milhão de possíveis abortos provocados no país. E com relação a mortes associadas a aborto, o número de 70 a 80 por ano, que aparece no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), é certamente a ponta do iceberg”, avalia a médica sanitarista Tânia Di Giacomo Lago, professora do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, em comentário ao blog do CEE-Fiocruz. O número de mortes, diz Tânia, pode ser de 3,5 mil.
A sanitarista foi uma das participantes da audiência pública realizada nos dias 3 e 6 de agosto de 2018, em Brasília, para apoiar decisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao destino da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que pede a descriminalização do aborto até a décima segunda semana da gravidez. A ação foi protocolada pelo PSOL, em parceria com o Instituto de Bioética (Anis) em março do ano passado, e sustenta que os artigos 124 e 126 do Código Penal, que instituem a criminalização do aborto, desrespeitam preceitos fundamentais da Constituição Federal. Mais de 40 representantes de diversos setores da sociedade estiveram presentes ao debate.
Para Tânia, a realização do debate no âmbito do STF foi mais apropriada do que no Legislativo, uma vez que não se trata de discutir opiniões, ou de saber se os representantes eleitos da população são ou não favoráveis à descriminalização, conforme observa. “Estamos tratando do direito à vida, do direito da mulher em permanecer viva, e na guia desse direito, do potencial de vida de um feto”, explica. “Não se trata de embate político, ideológico e partidário”.
Leia o comentário abaixo.
“No Brasil, como em qualquer outro país em que o aborto é crime, exceto em poucas situações, os dados existentes a respeito desse procedimento são sempre discutíveis. Algumas mulheres não revelam que fizeram, fazem ou estão fazendo um aborto. Elas temem represálias, sejam criminais, familiares, de amigos e, mesmo, de alguns serviços médicos. Portanto, como há um impedimento social para que a mulher conte sobre o aborto, é evidente que em todos os países onde essa prática é ilegal, os dados sejam subestimados. E, se são subestimados, o que se utiliza são ferramentas e parâmetros que existem na biografia nacional, para se chegar a um número próximo da realidade.
Como se trata de estimativas, as pessoas contrárias à descriminalização acusam as que são favoráveis de politizar a questão, a partir dos números.
É possível dizer que, pelo conhecimento que utilizamos e pelo número de internações e procedimentos decorrentes do aborto no SUS, podemos chegar a perto de meio milhão de possíveis abortos provocados. E com relação a mortes, o número de 70 a 80 por ano, que aparece no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) associadas a abortos é certamente a ponta do iceberg. O que podemos afirmar é que no mínimo 70 mulheres morrem por ano no Brasil em decorrência do aborto. Nessas mesmas estatísticas sociais existem 3,5 mil mortes de mulheres em idade fértil no Brasil, cujas causas aparecem no SIM como indeterminadas, e é muito provável que aí esteja o número calculável de mortes por aborto.
Superar a misoginia, conhecer e trazer a público muitos desses argumentos, que no mundo desenvolvido falam a favor da descriminalização do aborto, em favor da manutenção da vida das mulheres, é muito importante para nossa evolução como sociedade
Na audiência pública, um médico católico do Rio de Janeiro afirmou que a estimativa de meio milhão de abortos realizados no Brasil é mentirosa e que é usada para forçar a Corte a entender o problema como muito frequente e considerar necessária a descriminalização. Não adianta brigar pelos números. Temos que reconhecer que somente quando o aborto for descriminalizado poderemos ter os dados certos – e, provavelmente, não teremos mais mortes de mulheres em decorrência de aborto, sejam 80, ou mil mulheres.
Foi surpreendente ver que a maioria das pessoas que levaram suas contribuições à audiência pública foram favoráveis a descriminalização, uma vez que existe na sociedade brasileira uma má vontade com relação as mulheres. Os juízes encontrarão nos documentos que foram anexados com processos pelos palestrantes muitos argumentos a favor da descriminalização.
Superar a misoginia, conhecer e trazer a público muitos desses argumentos, que no mundo desenvolvido falam a favor da descriminalização do aborto, em favor da manutenção da vida das mulheres, é muito importante para nossa evolução como sociedade.
Acredito que a descriminalização do aborto teria impacto positivo na redução drástica da morte de mulheres jovens que realizam o procedimento em condições inseguras. Teríamos também uma redução importante no número de internações para procedimentos pós-aborto.
Hoje, a maioria dos países que descriminalizaram o aborto utilizam o caminho medicamentoso, sem internação. Nesses lugares, a mulher que esteja ainda no princípio da gestação, recebe, em uma clínica, ambulatório, ou unidade básica de saúde da mulher, medicamentos de uso oral e até de uso vaginal que pode ser administrado até mesmo na consulta. Ela volta para casa para ser monitorada durante um dia, ou 48 horas, e retorna para avaliação. Se estiver tudo certo, ela não precisa ser internada. Caso passe a ser assim no Brasil, as internações diminuirão drasticamente.
Para incentivar a Suprema Corte na direção da descriminalização, é preciso que a sociedade, o conjunto de mulheres, cientistas, médicos e profissionais de saúde que estiveram presentes na audiência convoquem debates públicos, solicitem na imprensa, na televisão e nas mídias sociais que o assunto seja posto em pauta e discutido. Assim, poderemos favorecer que o julgamento ocorra e, quem sabe, a descriminalização seja aprovada. (Comentário a Daiane Batista/CEE-Fiocruz)