Sistemas universais ou cobertura universal? De Alma-Ata a Astana, o alcance do direito à saúde em disputa
Há quarenta anos, realizava-se em Alma Ata, no Cazaquistão, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, e o mundo passava a contar com um claro norte pelo qual se orientar, na garantia de atenção primária à saúde (APS) para as populações: justiça social e saúde para todos, superação das desigualdades sociais entre países e em cada país, e uma concepção abrangente da APS como base dos sistemas de saúde de acesso universal e cuidado integral, reconhecendo-se a inseparabilidade entre saúde e desenvolvimento econômico e social e defendendo-se a participação social na defesa e ampliação dos direitos.
Essa concepção de atenção primária, no entanto, corre o risco de se desvirtuar. Em 25 e 26/10/2018, realiza-se, em Astana, também no Cazaquistão, a Conferência Global sobre Cuidados Primários de Saúde para celebrar as quatro décadas de Alma Ata. É possível observar, no texto preliminar da Declaração de Astana, em negociação pelos países, que a ideia de sistemas universais perdeu espaço para a defesa da cobertura universal de saúde (CUS) como forma de garantir a atenção primária. Não se trata apenas de nuances semânticas. Na esclarecedora entrevista concedida à revista História, Ciências, Saúde Manguinhos, a sanitarista Ligia Giovanella, pesquisadora da Ensp/Fiocruz, verifica-se que se trata de abordagens distintas da atenção à saúde. “A CUS, como vem sendo difundida pelo Banco Mundial, Fundação Rockfeller e OMS, centra-se na cobertura financeira, cada indivíduo com um plano de seguro privado ou público. Ora, isso não garante acesso aos serviços de saúde de acordo com as necessidades de saúde”, alerta Ligia.
Ela relata que, em estudo do qual participou pelo Instituto Sul Americano de Governo em Saúde (Isags) sobre APS nos doze países da América do Sul, a declaração de Alma Ata era mencionada em quase todos os documentos como estratégia para reorientar os sistemas de saúde e garantir o direito universal à saúde. “Essa concepção de APS integral conquistou corações e mentes ao redor de todo mundo na luta em defesa dos direitos humanos e orienta até hoje movimentos sociais locais e globais como o People Health Movement (Movimento pela Saúde dos Povos)”, destaca a pesquisadora.
A cobertura universal de saúde, como vem sendo difundida pelo Banco Mundial, Fundação Rockfeller e OMS, centra-se na cobertura financeira, cada indivíduo com um plano de seguro privado ou público. Ora, isso não garante acesso aos serviços de saúde de acordo com as necessidades de saúde (Ligia Giovanella)
Para isso, é necessário contar com sistemas de saúde. “Serviços de saúde não são distribuídos conforme necessidades de saúde se o governo não planejar e implantar um sistema em rede regionalizada com integração entre todos os níveis assistenciais que possam ser acessados conforme a necessidade. Sem um desenho de sistema perpetuam-se desigualdades regionais, e populações desfavorecidas não são cobertas”.
Por isso, preocupa a orientação observada nos objetivos e documentos preliminares da nova Conferência de Astana em que “se subsume a APS à cobertura universal de saúde”, realizada por meio de contratos de seguro, como analisa Ligia. De acordo com a pesquisadora, esses contratos implicam a definição de uma cesta de serviços que pode ser maior ou menor, conforme a possibilidade de pagamento de cada um. “Com seguros de saúde diferenciados por grupo populacional, as desigualdades são cristalizadas!”, aponta, destacando que esse caminho é muito diferente do proposto em Alma Ata. “Muito diferente da proposta de sistemas públicos universais de saúde que têm como princípio que a saúde é um direito de todos e dever do Estado”.
Ligia integra a Rede de Pesquisa em APS da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que respondeu à consulta pública sobre uma das versões da Declaração de Astana, “salientando a necessidade de ratificar Alma Ata”. Na forma como se apresenta o texto, observa-se ausência do chamado à responsabilidade governamental na garantia do direito à saúde; ênfase na participação do setor privado e nas iniciativas individuais. Não há menção às desigualdades sociais, nem à justiça social, como enumera a sanitarista. “E certamente há enormes interesses privados de seguradoras, indústria farmacêutica, de equipamentos, entre outros, na expansão de seus mercados pela proposta de cobertura universal. Contudo nenhum conflito de interesse é mencionado”.
Nos próximos dias, a Fiocruz divulgará documento, elaborado por um grupo de trabalho, formado por pesquisadores da instituição, que participarão da Conferência de Astana, no qual posiciona-se em favor da APS integral, do direito universal de saúde e dos sistemas públicos universais de saúde – como o SUS.