Por que punir os mais pobres se há alternativa de se arrecadar mais e, ao mesmo tempo, fazer justiça fiscal e social?
Por Eduardo Fagnani*
Reformas da Previdência são necessárias para ajustar o sistema às transformações demográficas e do mercado de trabalho. Países desenvolvidos fazem reformas periodicamente. Mas não destroem o Estado Social, dado o seu papel central na redução das desigualdades. No Brasil a reforma também é necessária. Para reformar, o principal requisito é ter um diagnóstico correto dos problemas. Nas últimas três décadas foram instituídas dezenas de mudanças constitucionais e leis complementares. Hoje, o problema não reside no Regime Geral da Previdência Social (RGPS) (benefícios médios em torno de R$ 1.500,00) nem no Benefício de Prestação Continuada (BPC) (benefícios equivalentes ao piso do Salário Mínimo). Esses segmentos requerem mudanças pontuais; não requerem reforma estrutural. O problema também não reside no servidor público federal que começou a trabalhar a partir de 2012 e vai aposentar-se por volta de 2050. Com a imposição do teto (R$ 5.840,00) os gastos tendem a cair no futuro. No Brasil o problema está localizado no estoque de servidores federais, na aposentadoria dos militares e na Previdência dos servidores estaduais.
As propostas de reforma elaboradas no governo anterior e no atual desconsideram esse diagnóstico. O objetivo não é ajustar o sistema às transformações demográficas e do mercado de trabalho. A proposta tem caráter exclusivamente fiscalista e embute o real propósito de destruir o Estado Social conquistado em 1988. A Seguridade Social brasileira é o principal mecanismo de proteção social e poderoso instrumento de desenvolvimento. O objetivo maior da “Nova Previdência” é desfigurar esse instrumento.
Em outras palavras, a reforma é outra peça do processo de implantação do projeto ultraliberal no Brasil, em curso desde 2016. Em última instância, esse projeto tem por propósito enterrar o pacto social de 1988, empurrando o modelo de proteção social brasileiro em duas direções que aprofundarão a desigualdade: da Seguridade Social, para o Seguro Social e para o assistencialismo. Portanto, a reforma da qual se cogita hoje não faz o necessário ajuste das regras vigentes. Na verdade, sequer se trata de alguma ‘reforma’. Estamos diante de uma proposta de transformações estruturais de grande monta – que a sociedade jamais discutiu e que alteram radicalmente o pacto de 1988.
Sequer se trata de alguma ‘reforma’. Estamos diante de uma proposta de transformações estruturais de grande monta – que a sociedade jamais discutiu e que alteram radicalmente o pacto de 1988
Nesse cenário, prevalece a superficialidade da ideologia, em detrimento do rigor técnico e do debate qualificado de ideias. O artifício, nesse caso, para impor as mudanças estruturais exigidas por alguns setores, é o terrorismo demográfico, financeiro, econômico.
Terrorismo econômico
No caso do terrorismo econômico, é exemplar a declaração de um dirigente do Ministério da Economia, para o qual são possíveis dois “Brasis” diferentes, em 2023: “um em franco crescimento com a aprovação da reforma, e outro sem ela, mergulhado em profunda recessão e sem empregos”. O dirigente requenta o famoso TINA(“There Is No Alternative”), slogan atribuído a Margaret Thatcher: “Vamos ser honestos, se essa reforma não passa, é natural que o País entre em recessão. Não tem o que fazer”.
Na mesma linha, um ex-presidente do Banco Central durante o Regime Militar sentencia que com a reforma da Previdência, “o PIB pode crescer a 3%”, e o investimento estrangeiro direto pode “ultrapassar a faixa de US$ 100 bilhões” anuais. A reforma seria o único mecanismo capaz de promover o equilíbrio fiscal. Ela inauguraria “uma visão positiva de que o país pode crescer e honrar compromissos com investidores”. Em resumo, “o efeito principal da reforma da Previdência é mudar a percepção do risco país”.
Também é exemplar a opinião de conhecido economista, profissional do mercado financeiro, para quem um crescimento mais robusto da economia viria em 2020. “Só que, para voltar a crescer, precisamos da reforma da Previdência — é o começo e a parte mais difícil do ajuste fiscal — e do sucesso dos leilões de concessão”. Em suas palavras, com a reforma aprovada, o país poderá crescer 3% em 2020, “não haverá pressão sobre a inflação, e os juros vão cair”. Entretanto, “se não fizemos a reforma, o Brasil voltará para a recessão”. Em síntese: “ou voltamos a crescer com estabilidade ou afundamos de novo na mediocridade”. É o terrorismo econômico.
Profissão de fé
O que se vê, se se acompanha o olhar dos financistas, é que os destinos da Nação parecem depender exclusivamente da reforma da Previdência. Como bem disse o economista Alexandre Barbosa, “parece uma Nova Providência, não Nova Previdência, como se o crescimento fosse cair do céu por efeito de uma reforma exclusiva”. Com base em princípio elementar de macroeconomia, o especialista alerta que “o que traz crescimento é o consumo das famílias e os investimentos públicos e privados, em contexto internacional favorável”. Para ele, com a reforma da Previdência, “há riscos de tirar poder de compra de segmento da população que poderia dar substância à expansão do PIB.”
Para o economista Luiz Guilherme Piva, “a versão de que todos ganham e de que tudo se soluciona com a reforma (da Previdência) é uma profissão de fé”. Segundo ele, “o que intriga é o poder milagroso que se atribui a ela”. A julgar pelo que é veiculado pelos meios de comunicação, “não existe mal que [a reforma da Previdência] não redima: déficit fiscal, entraves à produção, desconfiança de investidores, desemprego, dívida pública e tudo o mais”.
Mais de 75% da ‘economia’ que governo espera da “Nova Previdência” incidem sobre os beneficiários do Abono Salarial, do INSS (rural e urbano) e do BPC, cujos benefícios situam-se próximos do piso do salário mínimo
Via injusta, que aprofunda a desigualdade social
O propósito deste artigo é mostrar que há várias vias alternativas, para o país não “quebrar”. Todas elas exigem que se desmonte, no Brasil, o maior programa mundial de transferência de renda dos mais pobres, para os ricos. A saída é criar condições para a retomada do crescimento, pelo combate aos privilégios de que usufruem os detentores da riqueza.
A “Nova Previdência”, no entanto, não contempla quaisquer dessas vias possíveis para fazer o ajuste fiscal pelo lado de aumentar a contribuição dos abastados. O governo estima que geraria economia de R$ 1,165 trilhão em 10 anos. O caráter injusto e desigual dessa reforma também se reflete no fato de que, desse montante, R$ 715 bilhões serão “economizados” porque se cortarão direitos garantidos para a proteção à velhice dos trabalhadores rurais e urbanos inscritos no RGPS; e outros R$ 182 bilhões, no BPC e no endurecimento das regras do Abono Salarial. Portanto, 75,6% da suposta economia decorrem da subtração de direitos dos beneficiários do INSS (rural e urbano), da assistência social e do Abono Salarial (Figura 1).
FIGURA 1 – ESTIMATIVA DA ECONOMIA DE RECURSOS DA PEC 6/2019 EM 10 ANOS
Em Bilhões de 2019
Ao contrário da visão corrente acerca dos “privilegiados”, os valores dos benefícios do RGPS e do BPC são relativamente baixos, próximos do valor do salário mínimo – apenas uma renda básica contra a pobreza. Em 2016, o RGPS concedeu cerca de 20 milhões de benefícios urbanos, dos quais 53,8% tinham valor igual ou menor do que Salário Mínimo; 21,3% dos benefícios ficavam entre um e dois Salários Mínimos; e 11,1% dos benefícios estavam entre dois e três salários mínimos. Portanto, 86,2% dos benefícios do INSS urbano eram iguais ou inferiores a três salários mínimos. No segmento rural, em 2016 foram concedidos cerca de 10 milhões de benefícios, sendo 98,6% equivalentes ao piso do Salário Mínimo (Figura 2). Esses supostos “privilegiados” contribuirão com quase 60% da suposta “economia” proporcionada pela suposta reforma.
FIGURA 2 – RGPS – QUANTIDADE DE BENEFÍCIOS EMITIDOS POR FAIXA DE SALÁRIO MÍNIMO (EM %)
POSIÇÃO EM SETEMBRO DE 2016
FONTE: DATAPREV, SUB, SINTESE. BOLETIM ESTATÍSTICO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL – VOL. 21 Nº 09 ANFIP – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL./DIEESE – DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. PREVIDÊNCIA: REFORMAR PARA EXCLUIR? CONTRIBUIÇÃO TÉCNICA AO DEBATE SOBRE A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA – BRASÍLIA: ANFIP/DIEESE; 2017. 212P.
Outros “privilegiados” que contribuirão com a economia estimada de R$ 182 bilhões (16% do total) são os beneficiários do BPC, dirigido aos idosos e portadores de deficiências socialmente mais vulneráveis; atualmente, o BPC beneficia cerca de 5 milhões pessoas, garantindo renda mensal de cidadania, no valor de um salário mínimo, aos idosos (65 anos ou mais) e pessoas com deficiência e renda familiar per capita inferior a ¼ de salário mínimo. Trata, portanto, da proteção àqueles incapazes de garantir sua sobrevivência por meio do trabalho remunerado, seja pela idade avançada, seja pela limitação imposta por doença ou deficiência. Ao lado das aposentadorias e pensões, o BPC concorreu para que a pobreza e a indigência nesta população se tornasse fenômeno quase residual. Em 2014, apenas 0,78% dos idosos com 65 anos ou mais viviam com renda familiar per capita de até ¼ de salário mínimo.
Há ainda um terceiro grupo de “privilegiados” que serão afetados: a proposta reduz o número de pessoas que passarão a ter direito ao abono salarial do PIS. Hoje quem ganha até dois salários mínimos tem direito ao benefício. A proposta é pagar só para quem recebe um salário mínimo. Segundo o Dieese, a medida afetará 21 milhões de brasileiros e tende a fazer a economia perder R$ 27,7 bilhões de movimentação.
Combate aos privilégios de que gozam os detentores da riqueza
O ajuste fiscal e o equilíbrio financeiro da Previdência podem ser alcançados se se reforçar a capacidade financeira do Estado, o que se obtém com maior equidade na contribuição das classes de maior renda, restringindo-se os privilégios seculares concedidos ao poder econômico e às camadas de alta renda.
Ao isolar a “crise da Previdência” e associá-la exclusivamente ao “excesso” de despesas, ficam afastadas de qualquer consideração as decisões do sistema político e as opções macroeconômicas que afetam as receitas do governo, da Previdência e da Seguridade Social.
O crescimento econômico é requisito para o equilíbrio financeiro da Previdência – pois suas receitas incidem sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro das empresas – e para a inclusão dos trabalhadores informais, que potencializaria as receitas do setor. Mas a reforma da legislação sobre o trabalho – parte do projeto ultraliberal em curso – caminha no sentido inverso: força o aumento no número de ocupações precárias e reduz as receitas da Previdência.
Pagamos cerca de R$ 400 bilhões de juros por ano, quase quatro anos da ‘economia’ que governo espera da “Nova Previdência”
Também é preciso enfrentar as profundas inconsistências do regime macroeconômico e fiscal brasileiro que chancela uma visão espúria, segundo a qual ao governo só compete controlar os gastos primários, não havendo nenhum limite para os gastos financeiros. Assim se eterniza a formidável transferência da riqueza pública, para os cofres dos ricos privados. Pagamos cerca de R$ 400 bilhões de juros por ano, quase quatro anos da ‘economia’ que governo espera da “Nova Previdência”.
Reforma Tributária, ajuste fiscal e justiça social
O ajuste fiscal e o equilíbrio financeiro da Previdência obtidos por contribuição maior das classes de maior renda também podem ser alcançados mediante uma “Reforma Tributária Solidária”.
A tributação brasileira está na contramão de outros países relativamente menos desiguais, sendo extremamente regressiva, porque incide sobre o consumo, não sobre a renda e a propriedade das classes abastadas. Não é verdade que a nossa carga tributária seja elevada, na comparação internacional. Mas é fato que temos a maior carga tributária, em todo o mundo, que incide sobre o consumo, repassada aos preços das mercadorias, onde captura parcela proporcionalmente maior da renda dos pobres, que da renda das classes mais abastadas.
Amplo estudo realizado por dezenas de especialistas concluiu que “é tecnicamente possível que o Brasil tenha sistema tributário mais justo e alinhado com a experiência dos países mais igualitários, preservando o equilíbrio federativo e o Estado Social inaugurado pela Constituição de 1988”.
O potencial incremento de receitas da taxação progressiva (R$ 357 bilhões) é mais que o triplo da ‘economia’ que governo espera da “Nova Previdência”
Mais especificamente, as simulações do projeto “Reforma Tributária Solidária” mostram que é tecnicamente possível quase duplicar o atual patamar de receitas da tributação da renda, patrimônio e transações financeiras, de R$ 472 bilhões para R$ 830 bilhões, um incremento de R$ 357 bilhões; em contrapartida, pode-se reduzir a tributação sobre bens e serviços e sobre a folha de pagamento em R$ 310 bilhões (caso se deseje preservar inalterada a carga tributária). (Figura 3).
FIGURA 3 – AUMENTO DA PROGRESSIVIDADE PELA MUDANÇA DA BASE DE INCIDÊNCIA: SITUAÇÃO ATUAL E SITUAÇÃO PROPOSTA
EM R$ MILHÕES
VALORES DE 2015 E ESTIMATIVAS
NOTA (1) INCLUI A O ACRÉSCIMO DE ARRECADAÇÃO NA RUBRICA DE IMPOSTO SOBRE RENDA RETIDO NA FONTE – NÃO RESIDENTES DE, PELO MENOS, 0,12% DO PIB, APROXIMADAMENTE R$ 6,9 BILHÕES. FONTE: A REFORMA TRIBUTÁRIA NECESSÁRIA – JUSTIÇA FISCAL É POSSÍVEL: SUBSÍDIOS PARA O DEBATE DEMOCRÁTICO SOBRE O NOVO DESENHO DA TRIBUTAÇÃO BRASILEIRA (DOCUMENTO COMPLETO) / EDUARDO FAGNANI (ORGANIZADOR). BRASÍLIA: ANFIP: FENAFISCO: SÃO PAULO: PLATAFORMA POLÍTICA SOCIAL. 2018.
Esse potencial de incremento da taxação sobre a renda, patrimônio e transações financeiras (R$ 357 bilhões), além de ampliar a justiça fiscal, representa cerca de três vezes mais recursos anuais do que, supostamente, seriam proporcionados pela “Nova Previdência”.
Desses R$ 357 bilhões de receitas potenciais, R$ 157 bilhões seriam obtidos por mudanças no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), por meio da revogação das diversas modalidades de isenção das altas rendas combinadas pela implantação de Nova Tabela Progressiva para o IRPF.
O potencial incremento de receitas provenientes de Nova Tabela Progressiva do IRPF (R$ 157 bilhões) é cerca de uma vez e meia superior da ‘economia’ que governo espera da “Nova Previdência”, pela maior taxação de apenas 750 mil contribuintes de alta renda
Nessa nova tabela, 38,55% dos declarantes ficariam isentos do IRPF, 48,70% seriam desonerados e 10,02% manteriam a alíquota atual. A tabela elevaria a tributação para apenas 2,73% dos declarantes, cerca de 750 mil contribuintes: 1,42% (390 mil contribuintes que recebem entre 40 e 60 Salários Mínimos) seriam onerados com a alíquota (35%), superior à atual: e 1,31% (360 mil contribuintes que recebem mais de 60 Salários Mínimos e acima de 320 Salários Mínimos mensais) (Figura 4).
FIGURA 4 – TABELA DE ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS DO IRPF: DISTRIBUIÇÃO DAS ALÍQUOTAS E POTENCIAL ARRECADATÓRIO
BASE 2015
A REFORMA TRIBUTÁRIA NECESSÁRIA – JUSTIÇA FISCAL É POSSÍVEL: SUBSÍDIOS PARA O DEBATE DEMOCRÁTICO SOBRE O NOVO DESENHO DA TRIBUTAÇÃO BRASILEIRA (DOCUMENTO COMPLETO) / EDUARDO FAGNANI (ORGANIZADOR). BRASÍLIA: ANFIP: FENAFISCO: SÃO PAULO: PLATAFORMA POLÍTICA SOCIAL. 2018.
As mudanças propostas no IRPF corrigiriam uma das grandes anomalias da tributação brasileira: quem declara renda superior a 240 salários mínimos mensais tem aproximadamente 70% dos seus rendimentos isentos ou não tributáveis. Assim, na situação atual, quem ganha mais de 320 Salários Mínimos mensais, por exemplo, paga alíquota efetiva de IRPF de apenas 6,36% (um valor próximo de quem ganha entre 7 e 15 salários mínimos). Na situação proposta essa alíquota efetiva subiria para 32,7% (Figura 5).
FIGURA 5 – TABELA DE ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS DO IRPF: ALÍQUOTAS EFETIVAS REAIS POR RENDA MÉDIA ANUAL (ATUAL E PROPOSTA/SIMULAÇÃO)
BASE 2015
A REFORMA TRIBUTÁRIA NECESSÁRIA – JUSTIÇA FISCAL É POSSÍVEL: SUBSÍDIOS PARA O DEBATE DEMOCRÁTICO SOBRE O NOVO DESENHO DA TRIBUTAÇÃO BRASILEIRA (DOCUMENTO COMPLETO) / EDUARDO FAGNANI (ORGANIZADOR). BRASÍLIA: ANFIP: FENAFISCO: SÃO PAULO: PLATAFORMA POLÍTICA SOCIAL. 2018. HTTP://PLATAFORMAPOLITICASOCIAL.COM.BR/JUSTICA-FISCAL-E-POSSIVEL-SUBSIDIOS-PARA-O-DEBATE-DEMOCRATICO-SOBRE-O-NOVO-DESENHO-DA-TRIBUTACAO-BRASILEIRA/
Em 2017, as isenções fiscais concedidas pelo Governo Federal atingiram R$ 406 bilhões, mais de quatro anos da ‘economia’ que governo espera da “Nova Previdência”
As isenções fiscais e a sonegação equivalem ao gasto da Seguridade Social
O referido estudo organizado pela Anfip/Fenafisco também alerta que há dois mecanismos crônicos e históricos de transferência de renda para as camadas mais privilegiadas que não podem ser ignorados no debate sobre as reformas tributária e previdenciária: as isenções fiscais e a sonegação. Enfrentar esses problemas caminha na mesma direção de buscar a progressividade e a recomposição da capacidade financeira do Estado.
É preciso uma profunda revisão nas isenções tributárias, pelas quais o Governo Federal (mas, também Estados e Municípios), anualmente, abre mão e deixa de arrecadar cerca de 20% de suas receitas. Em 2017, o montante de isenções totalizou R$ 406 bilhões, mais de quatro anos de ‘economia’ da “Nova Previdência”.
A sonegação deve ser tratada como crime. Mas deixou de o ser em 1995, quando a legislação (Lei nº 9.249) trouxe a possibilidade de se extinguir a punibilidade do agente, nos crimes tributários, caso o pagamento do tributo tenha sido feito antes do recebimento da denúncia. Também é preciso acabar com a prática do “refinanciamento”, que premia sistematicamente os sonegadores, com programas de parcelamento de débitos.
É imprescindível que se faça uma revisão criteriosa das renúncias fiscais, além de dar combate sem trégua à sonegação. Em conjunto, esses recursos – que são transferidos para as camadas mais abastadas e, deste modo, aprofundam o caráter regressivo da tributação – totalizam, aproximadamente, 12,8% do Produto Interno Bruto (PIB), montante superior ao dispêndio da Seguridade Social (11,3% do PIB) que a “Nova Previdência” planeja destruir.
Com a sonegação de impostos e as isenções fiscais, em conjunto, o governo deixa de arrecadar 12,8% do PIB, montante superior aos gastos da Seguridade Social (11,3% do PIB) que a “Nova Previdência” planeja destruir
Em suma: se, de fato, o país estivesse na iminência de “quebrar”, não seria o caso de se priorizar, com urgência, a Reforma Tributária, que tem potencial de arrecadação fiscal muito superior à tal suposta economia que adviria da “Nova Previdência”? Por que punir os mais pobres (beneficiários do RGPS, do BPC e do Abono Salarial), se há alternativa de se arrecadar mais e, ao mesmo tempo, fazer justiça fiscal e social?
*Eduardo Fagnani é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Ciência Política e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Atualmente leciona no Instituto de Economia da Unicamp, coordena a rede Plataforma Política Social e é pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho - Cesit. Fagnani é um dos autores de A reforma tributária necessária. Diagnóstico e premissas.
Publicado por Carta Capital, em 20-03-2019.