Paulo Amarante: 'O mercado explora a internação e as pessoas perdem o direito à cidadania e, muitas vezes, a vida'
“É uma bomba sobre uma política que vem sendo construída há quase 40 anos”. Assim define Paulo Amarante em entrevista ao Informe ENSP sobre os retrocessos que a Nota Técnica Nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS representa para a Política Nacional de Saúde Mental.
Coordenador do Laboratório de Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (LAPS/ENSP/Fiocruz), integrante do Grupo Temático Saúde Mental da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Amarante ressalta que a nota desconsidera todos os debates e ações de construção do SUS e da Reforma Psiquiátrica. “Com a nota, vemos uma inversão dessa lógica, com o retorno da velha lógica das políticas centralizadas e impostas de cima para baixo, sem participação social ou construção coletiva”. Após toda a polêmica gerada em torno dos pontos abordados em suas 32 páginas, a nota foi retirada do site do Ministério da Saúde. O ministro Luiz Henrique Mandetta disse à imprensa que o teor do documento será reavaliado pela nova coordenação geral de saúde mental, álcool e outras drogas (CGMAD/MS), que se encontra em vacância.
Ao ser nomeada como “técnica” e seus defensores qualificarem as críticas como “ideológicas”, há uma estratégia de mascaramento dos interesses políticos e econômicos que compõem o documento, na visão de Amarante. “As ‘robustas evidências científicas’ que atribuem ao documento são utilizadas quando interessam, descartando as que não corroboram a visão de mundo que têm”, dispara o abrasquiano, dando como exemplo a proposta de retorno dos hospitais psiquiátricos como integrantes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). “A ideia de colocar o hospital de novo no centro da rede é recolocar a questão do mercado privado da saúde, de um modelo que explora a internação e no qual as pessoas perdem o direito à cidadania e, muitas vezes, a vida”. As ditas evidências científicas, segundo Amarante, não aparecem no documento quando o tema é a redução de danos, uma técnica exitosa e com muitos estudos já produzidos em centros científicos da Europa. Para o tema, a Nota aposta nas Comunidades Terapêuticas, “que de comunidades e de terapêuticas nada têm”, como diz o pesquisador.
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Sobre a eletroconvulsoterapia, técnica mais conhecida como eletrochoque e criada na Itália no final da década de 1930, o docente afirma que há pesquisadores que defendem o uso, mas em condições muito específicas e ponderadas, sempre com consentimento informado e acompanhamento da família. “No entanto, o uso da ECT pode ser feito de maneira muito voluntariosa e pouco controlada, sendo utilizado como forma de punição”.
A dita “calmaria” posterior à convulsão induzida é, na visão de Amarante, é parte da recuperação de um sofrimento provocado, e “não atinge em hipótese alguma a psicose”. “Pergunto as pessoas quanto elas acham que custa um aparelho de ECT que o Estado vai comprar e espalhar pelas unidades; qual o custo da capacitação de quem vai aplicar tal tratamento. Com tantas prioridades e precariedades na saúde pública brasileira, o fato de priorizar e investir recursos na compra de ECT só indica que há uma pressão da indústria de equipamentos médicos”, reafirma . Vistoria realizada em dezembro de 2018 pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) localizou diversos aparelhos de eletrochoque irregulares em clínicas psiquiátricas em todo o país. Denúncias mais recentes apontam verdadeiras quadrilhas instaladas em clínicas particulares no estado do Paraná, com armas e munições ilegais.
O último ponto abordado na entrevista é o possível retorno à internação de crianças e adolescentes, “um ataque grave à sociedade brasileira”.
Publicado originalmente na Abrasco.
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