Paulo Amarante: ‘Pensar saúde mental é pensar a construção de subjetividades e possibilidades de estar e ser no mundo’
Com a revolução digital, as sociedades modernas têm experimentado diferentes formas de interagir com o mundo, em relações complexas, “cada vez menos presenciais e mais remotas”, destaca o psiquiatra e sanitarista Paulo Amarante, um dos pioneiros na luta antimanicomial no Brasil, em entrevista ao CEE Podcast.
Paulo, que também é presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e pesquisador sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz) e do CEE-Fiocruz, faz uma análise dos desafios que a era tecnológica impõe às sociedades e destaca os impactos que essas mudanças geram na saúde mental.
O pesquisador alerta, no entanto, que, nessas análises, é preciso cuidar para evitar um “esvaziamento” do termo saúde mental. De acordo com ele, seja no digital ou no analógico, há de se ter cuidado, pois o termo carrega um conceito amplo no qual se dá a construção de subjetividades e de possibilidades de estar no mundo e de ser no mundo. Saúde mental abrange, assim, “nossos relacionamentos, pensamentos, experiências e vivências”, diz.
Segundo Paulo, a partir dessa compreensão, precisamos estabelecer limites e estar sempre discutindo saídas sustentáveis para manter ao máximo “as relações humanas, de cuidado, de escuta, e de afeto – por exemplo, falar de viva voz com um amigo no dia do aniversário –, de modo que não sejamos reduzidos a manifestações apenas superficiais como são os emojis no mundo virtual”.
Conforme avalia o sanitarista, a complexidade das relações estabelecidas no espaço online tem nos colocado desafios, pois estamos diante do esvaziamento das relações, sejam elas sociais ou políticas, e precisamos manter de forma permanente uma atitude ética e crítica. “Temos um ambiente digital com pessoas conectadas, porém isoladas”, pontua, observando que não se sabe exatamente como, onde e para que se constituem esses ambientes digitas e quem ou quais são os interesses da produção de certas informações que circulam. “Esvaziam-se os sujeitos, as pessoas vão ficando cada vez menos capazes de sofrer, de sentir, de superar, e vão recorrendo cada vez mais aos psicofármacos, e aos mecanismos digitais como forma de não pensar em si, de não enfrentar os problemas, as dificuldades. Esse esvaziamento transforma as relações em meras redes frias de contato”, salienta.
A realidade virtual e as futuras gerações
Paulo Amarante enfatiza, ainda, que estamos assistindo a um movimento em que as crianças estão cada vez menos compartilhando espaços e brincadeiras, “perdendo a capacidade de construção do sentimento, de elaboração das frustrações e de reconstrução de significado de vida, uma constituição importante para construção da nossa vida adulta”.
De acordo com o pesquisador, a realidade virtual e automação das brincadeiras não têm possibilitado a experimentação das emoções e das possibilidades da vivência humana necessárias para construção do indivíduo no futuro. “As crianças de hoje costumam brincar em joguinhos automáticos, limitantes. Esses jogos as colocam numa relação de desigualdade de relacionamento, pois a máquina joga a partir de uma espécie de uma programação elaborada para vencer. Criam-se mais dificuldades, não há ajuda diante das limitações e não dá tempo de superar frustrações, é game over, acabou, perdeu, volta a jogar, diante de um automatismo muito forte”, alerta.
Para Paulo essa é uma questão que requer reflexão de toda sociedade. Pais e educadores precisam entender que limitar o uso da exposição digital é um “estímulo para que as crianças voltem a se organizar, sociabilizar, brincando, jogando, correndo, perdendo e ganhando”, completa.