Ligia Giovanella: ‘A continuidade dos cuidados na pandemia é um desafio enfrentado com estratégia e criatividade pelas equipes de Saúde da Família’
Em podcast para o blog do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho, a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca Ligia Giovanella, integrante da Rede de Pesquisa em Atenção Primária da Abrasco, destaca os principais desafios da Atenção Primária à Saúde (APS) durante a pandemia de Covid-19. A pesquisadora expõe as estratégias das atividades de rotina das Unidades Básicas de Saúde, para garantir a continuidade dos cuidados durante a pandemia e enfrentar novas e antigas demandas no pós- pandemia.
Segundo Ligia, essa continuidade é um desafio que tem sido enfrentado, ao mesmo tempo, com dificuldade e criatividade pelas equipes de Saúde da Família (ESF) em todo o Brasil. “Durante a pandemia de Covid-19 atividades de rotina nas unidades básicas foram reduzidas e, em alguns casos, até suspensos. Tivemos redução da cobertura vacinal infantil, da cobertura de pré-natal e exames preventivos, de cuidados de portadores de doenças crônicas com risco de agravamento”, relata Ligia. Mas, de acordo com a pesquisadora, gradualmente as ações vêm sendo adaptadas e retomadas. “Um esforço dos profissionais muitas vezes sobrecarregados e, frequentemente, com vínculos de trabalho precários”, salienta.
Ainda segundo Ligia, em diferentes epidemias observou-se um excesso de mortes por outras doenças que foram deixando de ser atendidas, e é justamente aí que se faz importante a continuidade do cuidado. “Hipertensos, diabéticos, e demandas agudas por outros problemas seguem precisando de atenção e as ações de prevenção a doenças precisam continuar sendo desenvolvidas”.
A pesquisadora cita os indicadores de avaliação de desempenho, incentivo para ações estratégicas, definidos na plataforma e-Gestor AB, do programa de financiamento Previne Brasil do Ministério da Saúde, apontando que, no primeiro quadrimestre de 2021, o percentual de gestantes com pelo menos seis consultas de pré-natal realizadas era somente de 40%, e o de crianças menores de um ano que receberam a terceira dose da vacina inativada de poliomielite e da pentavalente era somente 50%. “Um péssimo resultado”, avalia.
Para Ligia, esse cenário está diretamente relacionado ao fato de o Governo Federal não ter garantido abastecimento regular de imunizantes infantis. “Certamente o esforço para recuperar esses importantes retrocessos serão enormes”, considera.
Esses problemas, no entanto, não ocorreram só no Brasil, como destaca. “Em todo mundo, atividades de serviço e atenção primária foram reduzidas por vezes com deslocamentos de profissionais para os hospitais. No Reino Unido e nos Estados Unidos, por exemplo, também foi documentada diminuição da cobertura vacinal infantil, com muita preocupação, pois pode aumentar certamente o risco de surtos de doenças evitáveis que já estavam sob controle”.
Ligia explica que, no Brasil, mesmo com todas essas dificuldades, grande parte das equipes de Saúde da Família buscou criativamente garantir a continuidade dos cuidados. “Unidades de saúde foram adaptadas separando fluxos para atender as demandas cotidianas e os casos suspeitos de Covid, e foram implementadas novas formas de atendimento remoto, tanto para monitoramento de casos, como para a continuidade do acompanhamento dos grupos prioritários”.
Ela toma como exemplo nas experiências destacadas no seminário Atenção Primária à Saúde não pode parar: a continuidade do cuidado, realizado em agosto de 2021, que apresentou um conjunto de experiências locais “que ilustram bem as potencialidades dos profissionais de Saúde da Família”.
Para a pesquisadora, é um desafio organizar essas novas formas de atenção, com aceleração na utilização de tecnologias de comunicação, estabelecendo os protocolos com segurança e garantia de privacidade. “As tecnologias, certamente, facilitam o acesso à comunicação, mas não podem ser um substituto para o contato presencial necessário à boa avaliação clínica e ao fortalecimento do vínculo, tão importante para adesão”, pondera.
Ela ressalta ainda, o papel dos agentes comunitários de saúde, que precisam ser incentivados em sua ação cotidiana nos territórios, para continuidade dos cuidados. “Os agentes comunitários de saúde são muito importantes no acompanhamento. E não podemos descuidar da proteção e da segurança desses trabalhadores e também dos usuários, com equipamento de proteção individual adequado e de boa qualidade para todos”, alerta.
Segundo a pesquisadora, o cenário é desafiador, pois o atual governo aboliu os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasfs) e, desde maio de 2020, não há mais financiamento para as equipes multiprofissionais. Com o surgimento de novas doenças e novas demandas decorrentes das sequelas da chamada Covid-19 longa, a Atenção Primária deve ser parte da rede de reabilitação pós-Covid. “Com incorporação de novos profissionais para atendimento multiprofissional, ampliação das suas ações com mais profissionais de saúde mental, fisioterapia, fonoaudiologia”, destaca.
Para Ligia, é importante lembrar, ainda, que, entre as novas demandas, a vacinação contra a Covid-19 tem sido um sobretrabalho para as equipes. “Temos que continuar a vigilância ativa comunitária, continuar ações de vigilância no território, o que faz necessária a disponibilidade de testes rápidos e de preparo para o desafio de enfrentar uma possível terceira onda da variante delta. Certamente, para recuperar o atendimento às demandas reprimidas e atender as novas demandas, será preciso ampliar as equipes dos profissionais”, conclui.