Licença compulsória para medicamentos e vacinas em debate
Chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (NAF/ENSP) e membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-geral das Nações Unidas, Jorge Bermudez defende a licença compulsória de medicamentos e vacinas para enfrentamento da Covid-19. A medida, que busca expandir o acesso às tecnologias relacionadas à pandemia evitando os monopólios e preços extorsivos, além de salvar vidas, está prevista no Acordo Trips da Organização Mundial do Comércio (OMC), ratificado pelo Brasil, e que obriga 164 países a reconhecerem patentes adotando “padrões mínimos e flexibilidades quando necessário”.
O Objetivo 3 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável também cita o “acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos” (3.8) e a necessidade de “proporcionar o acesso a medicamentos e vacinas essenciais a preços acessíveis, de acordo com a Declaração de Doha, que afirma o direito dos países em desenvolvimento de utilizarem plenamente as disposições do acordo Trips sobre flexibilidades para proteger a saúde pública e, em particular, proporcionar o acesso a medicamentos para todos” (3.b). “Estamos em uma situação excepcional, então, precisamos de soluções excepcionais”, afirmou o ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Em entrevista ao Informe ENSP, o chefe do NAF explicou como funciona a licença compulsória e a legalidade desse processo. Também comentou a decisão do STF de acatar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 5.529), revogando o Parágrafo Único do artigo 40 da nossa Lei de Propriedade Industrial, proibindo assim a extensão dos prazos de patentes e lembrou casos anteriores como o Efavirenz. “Quebrar patentes é um mecanismo absolutamente legal e reconhecido”, admitiu. Confira.
Em diversos artigos e palestras, o senhor vem defendendo a quebra de patentes como um mecanismo para facilitar o acesso às tecnologias relacionadas à Covid-19. O que essa medida representa para o enfrentamento à pandemia?
Quebrar a patente é quebrar o monopólio daquele produtor do medicamento. Com essa medida, na prática, o mercado passa a oferecer uma maior oferta de genéricos, logo, há uma maior competição e um preço mais acessível para aquele medicamento. Quando há o monopólio, você lança o produto a um preço estabelecido unilateralmente. Observamos, nitidamente, que a versão genérica de um medicamento reduz substancialmente o valor pela concorrência gerada.
Neste contexto de pandemia, há uma certa confusão porque estão chamando de quebra de patente os Projetos de Lei que estão no Congresso. O que acontece no Congresso é que, por causa da pandemia, da emergência e da possibilidade do desenvolvimento de novas tecnologias que possam ser úteis para a Covid-19, temos vários PL tramitando que suspendem temporariamente a patente desses produtos. Por isso, está sendo chamado de quebra de patente, pois é uma licença compulsória e uma das flexibilidades do acordo Trips da OMC.
Ao mesmo tempo, está correndo um grande movimento na Organização Mundial do Comércio, liderado pela Índia e África do Sul, com o apoio de mais de 100 países e da sociedade civil em peso, pela suspensão temporária da propriedade intelectual relacionada com a pandemia (Waiver). Inicialmente, o Brasil teve resistência a esse movimento pelo alinhamento com os EUA de Trump, se opondo à proposta e se afastando dos Brics, dos países em desenvolvimento e dos parceiros tradicionais, nitidamente na contramão da liderança que o Brasil teve no passado no campo do acesso a medicamentos. Lamentamos a imagem que vem sendo desenhada do Brasil nos veículos de comunicação no exterior.
A proposta pelo Waiver pretende que qualquer produto que tenha utilidade para Covid-19 não tenha patente na vigência da pandemia. Para se ter uma ideia, hoje já existem no mundo mais de 2.100 pedidos de patente para produtos potencialmente úteis para o vírus. Logo, sem o acordo, qualquer um desses que venha a ser considerado útil e venha a ser patenteado, terá monopólio e a posição de preços altos.
De forma semelhante, aqui no Brasil, vários projetos de lei e - um deles já foi aprovado no Senado, o Projeto de Lei n° 12, de 2021, suspende temporariamente todas as patentes relacionadas à Covid-19 durante a vigência da pandemia.
*Nota da Redação. A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira (6 de julho) o Projeto de Lei 12/21, do Senado, que permite ao governo federal quebrar a patente para produzir medicamentos e vacinas nos casos de emergência nacional ou internacional em saúde. Devido às mudanças, a proposta retorna ao Senado. Cabe destacar que no Senado, a proposta foi aprovada com 55 votos a favor e 19 contra. Na Câmara dos Deputados, o voto do Relator teve 425 votos aprovando e apenas 15 contrários. Os especialistas, como também nosso entrevistado, consideram esse um passo gigantesco e um poder legislativo que se posicionou em defesa da vida.
A quebra de patente é uma decisão única e exclusiva dos governos?
O licenciamento compulsório é uma flexibilidade prevista no artigo 31 do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio (Trips, na sigla em Inglês). Os governos têm autonomia para isso, pois a Lei de Patente é nacional. Existe o acordo Trips, mas cada país tem sua lei. Nossa lei permite o direito de emitir licença compulsória, mas isso tem que ser feito país a país. Na época do Temporão como ministro da Saúde, Celso Amorim como chanceler, Mariângela Simão como diretora do programa do Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde, e Reinaldo Guimarães como secretário de Ciência e Tecnologia, ainda no início do segundo mandato do presidente Lula, houve o licenciamento compulsório do Efavirenz, usado por 75 mil pacientes de aids na rede pública brasileira.
O licenciamento compulsório permitiu que o Ministério da Saúde importasse versões genéricas do Efavirenz de laboratórios pré-qualificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Portanto, o que se pagava ao fabricante passou a ser importado da Índia. De cinco dólares/comprimido passou para um dólar e, em dois anos, passamos a produzir em Farmanguinhos por pouco mais de um dólar. Qualquer país tem direito a quebrar uma patente, e quem mais faz isso são os Estados Unidos. Mas eles não fazem na área farmacêutica; e sim na área de tecnologia da informação.
Enfim, quebrar patente é legal de acordo com a nossa legislação e com o acordo Trips, portanto dentro do ordenamento jurídico nacional e internacional. Além disso, está na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, pois os países devem fazer de tudo para assegurar o acesso para suas populações a medicamentos e vacinas, incluindo a flexibilidade do acordo Trips de licenciamento compulsório.
Qual é a diferença entre a licença compulsória e voluntária?
A diferença é que na licença voluntária há um sublicenciamento da empresa multinacional detentora da patente, ou seja, ela define para quem quer fazer, em que condições e quais países vão receber, como foi o caso do Sofosbuvir no Brasil. O produto foi lançado em escala mundial em 2014 ao custo de 84.000 dólares pelo curso de tratamento de 12 semanas Logo em seguida, o produtor fez um licenciamento voluntário com 11 companhias farmacêuticas indianas, autorizando-as a produzirem e comercializarem ao preço de 840 dólares (cem vezes menos) para um escopo geográfico definido de países, o Brasil excluído. Hoje, a Organização Pan-Americana de Saúde fornece aos países que precisam a 60 dólares. É um absurdo a diferença entre custo e preço. A indústria quer recuperar os custos, não necessariamente de pesquisa e manter monopólio.
O quão importante é discutir o licenciamento compulsório de medicamentos em tempos de pandemia?
Estamos em uma situação excepcional, então, precisamos de soluções excepcionais. Uma suspensão de direitos de propriedade intelectual em tempos normais pode até ser criticada ou discutida, mas em momento de uma grave pandemia, o monopólio é nocivo e coloca um preço alto, portanto sendo uma barreira ao acesso. O que está sendo discutido é uma suspensão temporária – durante a vigência da pandemia – das tecnologias associadas à Covid-19, que podem ser medicamentos, vacinas, equipamentos de proteção individual. Por exemplo, existem máscaras de proteção patenteadas.
Qualquer tecnologia especificamente direcionada a uma situação pandêmica ou de emergência de saúde pública, em caráter nacional e internacional, tem sempre que ser encarada de maneira excepcional, pois devemos assegurar que todos tenham acesso. Em relação às vacinas, especificamente, o que estamos vendo agora é um apartheid no mundo. Países ricos comprando de 3 a 5 vezes a mais que a sua necessidade, enquanto países pobres, principalmente na África, só se vacinarão em 2022 ou 2023. É uma desigualdade gritante que tem que ser combatida. Por isso, vacina está sendo incluída nessa suspensão temporária, e não é que isso beneficie apenas o Brasil de imediato.
A partir disso, outros países poderão produzir vacinas e, assim, teremos mais oferta para o mundo. É preciso buscar soluções não apenas para um país, mas para o mundo inteiro. Quem ofertará vacinas para o Paraguai, Bolívia, Haiti, América Central, África? É necessário ampliar a produção para além de Europa e EUA, principalmente. Há um cadastro da OMS de países em desenvolvimento que teriam condições de produzir vacinas. Isso é uma realidade que tem que ser potencializada e explorada para melhorar o acesso.
Quais são os principais espaços de discussão sobre esse tema atualmente?
No mundo inteiro, a questão do acesso a tecnologias e a “quebra de patentes se encontra em discussão, nas Nações Unidas, na OMS, na OMC, no Conselho de Direitos Humanos. Desde o início da pandemia, houve o antagonismo entre a solidariedade necessária e as tecnologias como bens públicos, em contraposição à visão de mercado e do lucro.
No Brasil, o que está em jogo hoje é a defesa do SUS, a defesa da vida, o financiamento adequado e a revogação da Emenda Constitucional 95/2016, que é incompatível com o grau de desenvolvimento que necessitamos.
Se não me engano, temos 19 projetos em andamento – de instituições de pesquisa e universidades – para novas vacinas. A Fiocruz, inclusive, tem mais vacinas em desenvolvimento (em Bio-Manguinhos), além da incorporação da AstraZeneca. Então, necessitamos de investimentos para darmos respostas e recolocarmos o Brasil na sua capacidade máxima em termos do complexo econômico industrial da saúde. Temos potencial, temos profissionais e especialistas capacitados, mas não temos recursos. Universidades estão sendo depredadas, falta investimento no SUS, na educação e para ciência e tecnologia. E participamos de muitas discussões sobre isso.
Relançamos a Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Farmacêutica, liderada pela deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que defende a inclusão do acesso a medicamentos como um direito à saúde, o que é uma grande luta. Por outro lado, precisamos fortalecer o complexo econômico industrial da saúde, fortalecer a capacitação para não sermos dependentes do exterior. Vimos a crise que surgiu com a falta de matéria prima, as dificuldades em importá-los. Então, tem algumas áreas do conhecimento que podemos e temos condição de desenvolver, mas tem que ter recursos, financiamento e comando político para colocar isso adiante.
Vivemos um processo de desmonte do setor público no Brasil que vem da política ultraliberal do Governo e do negacionismo. Temos que resistir. Em defesa do SUS! Em defesa da vida!
A quebra de patente é uma decisão única e exclusiva dos governos?
O licenciamento compulsório é uma flexibilidade prevista no artigo 31 do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio (Trips, na sigla em Inglês). Os governos têm autonomia para isso, pois a Lei de Patente é nacional. Existe o acordo Trips, mas cada país tem sua lei. Nossa lei permite o direito de emitir licença compulsória, mas isso tem que ser feito país a país. Na época do Temporão como ministro da Saúde, Celso Amorim como chanceler, Mariângela Simão como diretora do programa do Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde, e Reinaldo Guimarães como secretário de Ciência e Tecnologia, ainda no início do segundo mandato do presidente Lula, houve o licenciamento compulsório do Efavirenz, usado por 75 mil pacientes de aids na rede pública brasileira.
O licenciamento compulsório permitiu que o Ministério da Saúde importasse versões genéricas do Efavirenz de laboratórios pré-qualificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Portanto, o que se pagava ao fabricante passou a ser importado da Índia. De cinco dólares/comprimido passou para um dólar e, em dois anos, passamos a produzir em Farmanguinhos por pouco mais de um dólar. Qualquer país tem direito a quebrar uma patente, e quem mais faz isso são os Estados Unidos. Mas eles não fazem na área farmacêutica; e sim na área de tecnologia da informação.
Enfim, quebrar patente é legal de acordo com a nossa legislação e com o acordo Trips, portanto dentro do ordenamento jurídico nacional e internacional. Além disso, está na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, pois os países devem fazer de tudo para assegurar o acesso para suas populações a medicamentos e vacinas, incluindo a flexibilidade do acordo Trips de licenciamento compulsório.
Qual é a diferença entre a licença compulsória e voluntária?
A diferença é que na licença voluntária há um sublicenciamento da empresa multinacional detentora da patente, ou seja, ela define para quem quer fazer, em que condições e quais países vão receber, como foi o caso do Sofosbuvir no Brasil. O produto foi lançado em escala mundial em 2014 ao custo de 84.000 dólares pelo curso de tratamento de 12 semanas Logo em seguida, o produtor fez um licenciamento voluntário com 11 companhias farmacêuticas indianas, autorizando-as a produzirem e comercializarem ao preço de 840 dólares (cem vezes menos) para um escopo geográfico definido de países, o Brasil excluído. Hoje, a Organização Pan-Americana de Saúde fornece aos países que precisam a 60 dólares. É um absurdo a diferença entre custo e preço. A indústria quer recuperar os custos, não necessariamente de pesquisa e manter monopólio.
O quão importante é discutir o licenciamento compulsório de medicamentos em tempos de pandemia?
Estamos em uma situação excepcional, então, precisamos de soluções excepcionais. Uma suspensão de direitos de propriedade intelectual em tempos normais pode até ser criticada ou discutida, mas em momento de uma grave pandemia, o monopólio é nocivo e coloca um preço alto, portanto sendo uma barreira ao acesso. O que está sendo discutido é uma suspensão temporária – durante a vigência da pandemia – das tecnologias associadas à Covid-19, que podem ser medicamentos, vacinas, equipamentos de proteção individual. Por exemplo, existem máscaras de proteção patenteadas.
Qualquer tecnologia especificamente direcionada a uma situação pandêmica ou de emergência de saúde pública, em caráter nacional e internacional, tem sempre que ser encarada de maneira excepcional, pois devemos assegurar que todos tenham acesso. Em relação às vacinas, especificamente, o que estamos vendo agora é um apartheid no mundo. Países ricos comprando de 3 a 5 vezes a mais que a sua necessidade, enquanto países pobres, principalmente na África, só se vacinarão em 2022 ou 2023. É uma desigualdade gritante que tem que ser combatida. Por isso, vacina está sendo incluída nessa suspensão temporária, e não é que isso beneficie apenas o Brasil de imediato.
A partir disso, outros países poderão produzir vacinas e, assim, teremos mais oferta para o mundo. É preciso buscar soluções não apenas para um país, mas para o mundo inteiro. Quem ofertará vacinas para o Paraguai, Bolívia, Haiti, América Central, África? É necessário ampliar a produção para além de Europa e EUA, principalmente. Há um cadastro da OMS de países em desenvolvimento que teriam condições de produzir vacinas. Isso é uma realidade que tem que ser potencializada e explorada para melhorar o acesso.
Quais são os principais espaços de discussão sobre esse tema atualmente?
No mundo inteiro, a questão do acesso a tecnologias e a “quebra de patentes se encontra em discussão, nas Nações Unidas, na OMS, na OMC, no Conselho de Direitos Humanos. Desde o início da pandemia, houve o antagonismo entre a solidariedade necessária e as tecnologias como bens públicos, em contraposição à visão de mercado e do lucro.
No Brasil, o que está em jogo hoje é a defesa do SUS, a defesa da vida, o financiamento adequado e a revogação da Emenda Constitucional 95/2016, que é incompatível com o grau de desenvolvimento que necessitamos.
Se não me engano, temos 19 projetos em andamento – de instituições de pesquisa e universidades – para novas vacinas. A Fiocruz, inclusive, tem mais vacinas em desenvolvimento (em Bio-Manguinhos), além da incorporação da AstraZeneca. Então, necessitamos de investimentos para darmos respostas e recolocarmos o Brasil na sua capacidade máxima em termos do complexo econômico industrial da saúde. Temos potencial, temos profissionais e especialistas capacitados, mas não temos recursos. Universidades estão sendo depredadas, falta investimento no SUS, na educação e para ciência e tecnologia. E participamos de muitas discussões sobre isso.
Relançamos a Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Farmacêutica, liderada pela deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que defende a inclusão do acesso a medicamentos como um direito à saúde, o que é uma grande luta. Por outro lado, precisamos fortalecer o complexo econômico industrial da saúde, fortalecer a capacitação para não sermos dependentes do exterior. Vimos a crise que surgiu com a falta de matéria prima, as dificuldades em importá-los. Então, tem algumas áreas do conhecimento que podemos e temos condição de desenvolver, mas tem que ter recursos, financiamento e comando político para colocar isso adiante.
Vivemos um processo de desmonte do setor público no Brasil que vem da política ultraliberal do Governo e do negacionismo. Temos que resistir. Em defesa do SUS! Em defesa da vida!
Publicado no Informe Ensp, por Filipe Leonel.