Leo Heller: ‘Disseminar a privatização do saneamento deixará cidades menores em situação vulnerável
O relator especial das Nações Unidas e pesquisador da Fiocruz-Minas, Léo Heller, destaca como a Medida Provisória 844/2018, que altera a Lei Nacional do Saneamento Básico e tem prazo até 11/11/2018 para ser aprovada pelo Congresso, é preocupante. O texto abre espaço à gestão dos sistemas de saneamento por prestadores privados e está longe de promover a universalização do serviço. “Passar para iniciativa privada um serviço em países desiguais como Bolívia e Brasil, em que aqueles que não têm acesso a saneamento são justamente os mais pobres, que vivem na zona rural e nas favelas, é ampliar esse fosso, é ampliar as diferenças”, alerta.
A Medida Provisória 844/2018, que altera a Lei Nacional do Saneamento Básico (Lei nº 11.455/2007) e tem até 11/11/2018 para ser aprovada, é preocupante. Em comentário ao blog do CEE-Fiocruz, o relator especial das Nações Unidas para o direito humano à água e ao esgotamento sanitário, Leo Heller, pesquisador da Fiocruz-Minas, alerta para a facilitação que essa MP concede à gestão do sistema de saneamento por prestadores privados. “O Brasil tem muita desigualdade social, e a falta de saneamento afeta ainda mais as populações que não atingiram um nível de sobrevivência digno”, explica o pesquisador, destacando ser fundamental olhar para essas populações desassistidas. “Olhar para elas requer investimento público, porque investimento privado nunca vai resolver esses problemas”, completa.
Leo Heller observa que, passar o serviço para iniciativa privada em situação como a da França, por exemplo, que tem o sistema universalizado e todos têm acesso ao serviço, é uma coisa. Já em situação como da Bolívia e do Brasil, na qual o acesso ao serviço não alcança toda a população e os que não têm acesso são justamente, os mais pobres, que vivem na zona rural e nas favelas, isso significa “ampliar esse fosso, ampliar as diferenças”.
Confira abaixo o comentário de Leo Heller ao blog do CEE-Fiocruz.
“Pela Lei Nacional do Saneamento Básico, bastaria um município firmar acordo com o prestador estadual para passar a contar com o serviço, sem a necessidade de licitação, facilitando a gestão pública. A mudança que a Medida Provisória 844/2018 propõe impede esse acordo entre os dois entes federativos, indicando que, se os municípios decidem delegar o serviço de saneamento, devem abrir chamada pública para verificar se há interessados. Se alguma empresa manifestar interesse, necessariamente, o município tem que fazer uma licitação, da qual podem participar tanto a companhia estadual quanto entes privados.
A leitura que devemos fazer é que isso abre muito as portas para iniciativa privada e o que resulta daí é que as empresas privadas deverão ficar responsáveis pelos sistemas maiores, em geral, mais superavitários, nas capitais e cidades de grande porte. Já os das cidades menores, muitas vezes deficitários, ficariam a cargo do estado, das companhias estaduais, que se veriam em situação muito frágil, com a perda de uma característica importante, o chamado subsídio cruzado: dentro de uma mesma companhia existe transferência de recursos dos sistemas mais lucrativos para bancar os menos lucrativos e, assim, proteger as populações desses municípios menores.A disseminação da privatização vai deixar cidades menores, de população mais pobre, em situação mais vulnerável. Essa é a consequência mais importante da mudança proposta na MP, e traz muitas preocupações.
As empresas privadas deverão ficar responsáveis pelos sistemas maiores, em geral, mais superavitários, nas capitais e cidades de grande porte. Já os das cidades menores, muitas vezes deficitários, ficariam a cargo do estado, das companhias estaduais, que se veriam em situação muito frágil
Caso a medida transforme-se em lei, poderá gerar, em prazo não muito longo, uma mudança drástica no setor. Os municípios já são muito assediados por grandes construtoras.
Um dos argumentos para abrir espaço à privatização é seria possível contar com mais recursos, dinheiro da iniciativa privada, em momento de crise fiscal. Mas experiências internacionais mostram que, quando há privatização, a empresa privada não entra com recursos próprios. Ela conta principalmente com duas fontes de recursos nos sistemas: o principal são as tarifas que a população já paga para o setor público e privado; e o financiamento do estado.
No Brasil, o BNDES, que aporta recursos, maneja recurso público e não privado para empresas. Vários estudos realizados em nível mundial mostram que é um engano considerar que as empresas privadas vão trazer dinheiro novo para o setor. O dinheiro usado seria arrecadado e giraria como recurso já existente.
Estamos passando por uma crise fiscal, com dificuldades em relação a recursos, e, ao mesmo tempo, estamos em momento de transição. Em situação de déficit e escassez de orçamento público, o governo tem que fazer escolhas. Pode investir em ativar o processo de industrialização, dando subsídio para empresas privadas, ou investir fortemente em políticas sociais.
Há algumas mudanças propostas na MP que podem ser interessantes, como a criação de uma instância nacional que estabeleça diretrizes de regulação para o setor de saneamento. A coordenação nacional de regulação é, hoje, muito pulverizada. A meu ver, apenas, é equivocado escolher a Agência Nacional de Água (ANA) como essa instância, porque a ANA não tem perfil para isso. De qualquer maneira, as mudanças não são estruturais, portanto não explicam o déficit que o setor tem.
Em situação de déficit e escassez de orçamento público, o governo tem que fazer escolhas. Pode investir em ativar o processo de industrialização, dando subsídio para empresas privadas, ou investir fortemente em políticas sociais
A Lei Nacional de Saneamento Básico já tem 11 anos e é razoável supor que precisa de aperfeiçoamento, mas acredito que não é esse o tipo de mudança necessário. O ideal seria manter a lei este ano como está e abrir um processo público de discussão com o novo presidente para pensar o que de fato precisa mudar.
Não vejo que sejam necessárias mudanças estruturais, porque a lei ainda tem uma validade. Na minha opinião, se tivesse que mudar alguma coisa seria o conceito de direito humano a água e esgotamento sanitário, porque isso não está lá. A resolução das Nações Unidas [aprovada em Assembleia Geral da ONU e que afirma o acesso à água limpa e segura e ao saneamento básico como direitos humanos fundamentais] é de 2010. Isso poderia mudar muita coisa em termos de políticas públicas. A mudança é muito mais de conceito, do que de operacionalização de processo. (Comentário a Daiane Batista/CEE-Fiocruz)