Estudo analisa óbitos de médicos e profissionais de enfermagem por Covid-19 e denuncia falta de sistema de informação potente no país
Os óbitos registrados entre profissionais de saúde na pandemia de Covid-19 não se concentraram apenas naqueles que estiveram na linha de frente do cuidado, alcançando, entre os médicos, especialidades que a princípio deveriam estar distantes do coronavírus em seu dia a dia de trabalho, como obstetras, pediatras e ortopedistas. Esse é um dos resultados observados no estudo Óbitos de médicos e da equipe de enfermagem por Covid-19 no Brasil: uma abordagem sociológica, publicado no volume 28/2 (2023) da revista Ciência & Saúde Coletiva e que integra o conjunto de pesquisas do projeto Mundo do Trabalho e Saúde, levado à frente pelo CEE-Fiocruz em parceria com a Ensp/Fiocruz. O estudo aponta também que o maior número de registro de mortes por Covid entre os trabalhadores da saúde foi observado no contingente de nível médio e técnico da enfermagem, corroborando resultados encontrados na pesquisa sobre trabalhadores invisíveis da saúde, realizada em 2022, no âmbito do projeto.
Sobrecarga e precarização do trabalho, com equipamentos de proteção individual escassos ou inexistentes, entre outros fatores relacionados às condições cotidianas de trabalho, deixaram vulneráveis os profissionais de saúde, aponta o estudo. “A pandemia atingiu toda a assistência à saúde no país, nas mais diferentes áreas do cuidado, em todas as regiões. A Covid nunca esteve concentrada em determinado segmento da saúde. É atendida por determinado segmento, mas atingiu profissionais de saúde de forma difusa, o que levou a muitos óbitos que poderiam ser, a nosso ver, evitados”, destaca ao blog do CEE a pesquisadora Maria Helena Machado, coordenadora das pesquisas, que assina o artigo ao lado de outros quatro autores – Eleny Guimarães Teixeira (Souza Marques/Estácio de Sá), Neyson Freire (USP); Everson Justino Pereira (Ensp/Fiocruz) e Maria Cecília de Souza Minayo (Ensp/Fiocruz).
O estudo analisou a realidade de médicos e equipe de enfermagem (enfermeiros, auxiliares e técnicos), levando em conta aspectos como idade, gênero, regiões do país e fases da vida profissional. “Além de sua importância técnica e estratégica, essas duas categorias somam mais de 2,9 milhões de profissionais, o que representa 72,5% do total da força de trabalho em saúde do país”, escrevem os autores.
As análises sobre os óbitos se deram com base nas informações do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), levando em conta também cor/raça (disponível apenas para a enfermagem) e especialidades de atuação (disponível apenas para os médicos). Foram considerados os óbitos por Covid-19 no período de março de 2020 a março de 2021, contabilizando-se 622 médicos, 200 enfermeiros e 470 auxiliares ou técnicos de Enfermagem.
Não podemos continuar em um país no qual mortes dos trabalhadores de saúde são calculadas somente por estimativas. Um sistema de informação potente, que interligue entidades, sindicatos e o Estado brasileiro, o Ministério da Saúde e as secretarias, é necessário (Maria Helena Machado)
Entre os trabalhadores que se encontravam na fase de plena vida profissional produtiva (com 36 a 50 anos de idade e 13 a 27 anos de formados), os índices de mortes registrados foram de 8,2% dos médicos, 46% dos enfermeiros e 40,6% dos auxiliares e técnicos de enfermagem. O registro de maior número de óbitos entre os profissionais de enfermagem em relação ao de médicos repetiu-se nas outras fases da vida profissional analisadas – início, desaceleração, início da paralisação das atividades e paralisação total. “Os dados evidenciam o comportamento distinto dessas categorias no mundo do trabalho”, constata o estudo.
Na análise dos óbitos levando em conta o gênero, no caso dos médicos, houve predominância absoluta de homens (87,6%), contra 12,4% de mulheres. Entre os enfermeiros, observou-se aproximação entre gêneros – 59,5% de mulheres e 40,5% de homens. Entre auxiliares e técnicos, a predominância foi de óbitos femininos (69,1%), contra 30,9% de masculinos.
Na correlação entre cor/raça e óbitos, verificada entre os profissionais da enfermagem, os índices apontaram que 31% dos enfermeiros que morreram por Covid-19 eram brancos, e 51%, pretos e pardos; e 29,6% das mortes de auxiliares e técnicos foram de brancos, contra 47,6% de pretos e pardos.
Chamou atenção dos pesquisadores a diversidade de especialidades de médicos que morreram por Covid: 45, com destaque para dez delas, que totalizaram 463 dos 622 óbitos registrados: ginecologia-obstetrícia (93), clínica médica (74), pediatria (61), cirurgia geral (51), ortopedia e traumatologia (41), cardiologia (36), anestesiologia (28), medicina de família e comunidade (24), psiquiatria (24) e medicina do trabalho (21). “Esse ranking evidencia a importância das áreas de assistência e de atendimento contínuo de grandes populações, que mesmo em tempos de pandemia não teriam como restringir suas atividades, nos estabelecimentos públicos ou privados, inclusive em consultórios médicos, quase sempre sem o aparato de biossegurança necessário”, analisam os pesquisadores. “Portanto, não foram alvo prioritário das políticas de biossegurança contra a pandemia”, consideram.
O estudo analisou, ainda, o índice de óbitos nas regiões e unidades da federação, levando em conta “a má distribuição da força de trabalho em saúde no país”, que indica “profunda desigualdade estrutural”. Na Região Norte, que detém apenas 4,5%, 7,6% e 8,7%, respectivamente, do contingente de médicos, enfermeiros e auxiliares/técnicos de enfermagem do país, as perdas profissionais foram de 16,1%, 29,5% e 23,2%, respectivamente, “elevadas”, conforme assinalam os autores.
Comportamento semelhante se deu no Centro-Oeste, com contingente de médicos de 8,6%, 8,8%, de enfermeiros, e 7%, de auxiliares/técnicos e índice de óbitos de 10,6%, 16,0% e 14,9%, respectivamente. Já no Nordeste observou-se equilíbrio entre o contingente e perdas de profissionais: a região tem 18,5% dos médicos, 26,2% dos enfermeiros e 22,4% dos auxiliares/técnicos do país e registrou 27,2%, 19,5% e 16,8% de óbitos.
O Sul também apresentou equilíbrio nos percentuais: detém 15,3% dos médicos, 12,3% dos enfermeiros e 13,1% dos auxiliares/técnicos, com registro de óbitos de de 11,4%, 8,5% e 13%, respectivamente. Enquanto a região Sudeste, que reúne mais da metade (53%) dos médicos do país, 45,1% dos enfermeiros e 48,9% dos auxiliares/técnicos, apresentou percentuais menores que as demais, levando-se em conta a proporcionalidade – 34,7%, 26,5% e 32,1%, respectivamente.
Os autores registram a dificuldade de acesso a “fontes seguras e estáveis” de informação, para determinar de modo preciso “a dimensão da devastação de contaminados e mortos tanto na população como entre os profissionais de saúde”. E chamam atenção, ainda, para as sequelas pós-Covid-19 já observadas entre os trabalhadores e que deverá impactar o cotidiano da atenção, pelo volume de afastamentos por conta dessas sequelas.
“Buscamos dados nos conselhos profissionais e apenas dois tinham dados disponíveis e confiáveis – o Cofen e o CFM. Mas a sistematização desses dados pelo Estado brasileiro, pelas secretarias de Saúde, se foi feita não foi divulgada, o que é muito grave”, considera Maria Helena Machado. “Hoje, não temos clareza da dimensão do que aconteceu com esses trabalhadores, contaminados, recontaminados e, em muitos casos, vindo a óbito”.
Para Maria Helena, trata-se de omissão do Estado em relação às condições de trabalho dos profissionais de saúde. “A pesquisa denuncia essa situação e aponta para a necessidade de estarmos mais munidos de protocolos que deem visibilidade e transparência a um dado público. Não podemos continuar em um país no qual mortes dos trabalhadores de saúde são calculadas por estimativas. Um sistema de informação potente, importante que interligue entidades, sindicatos e o Estado brasileiro, o Ministério da Saúde e as secretarias é necessário. Essa aliança precisa ser construída no novo governo”.