Ciência, Soberania Nacional e Direito à vida
Em artigo do pesquisador Carlos Gadelha, intitulado “Ciência, Soberania Nacional e Direito à Vida” e publicado originalmente no Jornal da Ciência em 17 de outubro de 2025, o autor reflete sobre o papel estratégico da ciência brasileira na promoção do bem-estar, da inovação e da soberania nacional, destacando o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde como elemento essencial para um projeto de desenvolvimento que una conhecimento, equidade e direito à vida.
A contribuição da ciência para a Covid-19 deve inspirar o projeto nacional que vincule ciência, bem-estar e soberania.
As soluções desenvolvidas pela ciência brasileira no campo da saúde demonstram, de forma consistente, a capacidade do país de oferecer respostas à altura das necessidades da população. Mesmo diante de grandes desafios, foi possível salvar mais de 200 mil vidas com a vacina contra Covid-19, fabricada no Brasil em plena emergência sanitária, graças aos frutos de uma política de mais de uma década para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde.
Atualmente, um importante salto foi dado com o depósito de patente da tecnologia brasileira para produção de vacinas de mRNA por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, cuja plataforma atenderá a várias doenças, como câncer, influenza, chikungunya, zika, oropouche, vírus sincicial respiratório, leishmaniose e tuberculose. A vacina contra a dengue, do Instituto Butantan, protege contra os quatro sorotipos do vírus e é administrada em dose única, características que a diferenciam e a tornam uma inovação brasileira de alcance global. Será certamente a ação mais estruturante para o enfrentamento da dengue, já em fase avançada de pedido de registro para ser acessível à população. A base tecnológica construída também permitirá ao Brasil avançar em curto prazo para uma vacina inovadora para chikungunya. A Universidade Estadual da Paraíba desenvolveu uma tecnologia que combina espectroscopia infravermelha com inteligência artificial para identificar metanol em bebidas e já contribui para mitigar a recente crise de intoxicações por metanol no Brasil. Muitos e muitos outros exemplos de inovação nacional para viabilizar o acesso com equidade poderiam ser apresentados.
Temos clareza de que a ciência brasileira não se limita a dar respostas em momentos de crise. O Brasil está entre os 15 países com maior produção científica mundial, tendo áreas de excelência com potencial de liderança global em praticamente todas as áreas que permeiam a quarta revolução tecnológica, como a utilização intensiva de inteligência artificial, coleta sistemática e processamento e análise de grandes bases de dados (big data) e contribuições da química e da biotecnologia para o uso sustentável da biodiversidade, gerando conhecimento de excelência que envolve desde as ciências físicas até as ciências humanas e sociais.
Apenas nas últimas semanas, assistimos aos prêmios concedidos pela Academia Mundial de Ciências ao físico brasileiro Luiz Davidovich (TWAS APEX 2025) em reconhecimento por suas contribuições à física quântica e ao prêmio concedido à cientista social brasileira Cecília Minayo (TWAS Awards 2022 – 2024) pelos estudos sobre a violência e seus impactos na saúde. A ciência brasileira é um orgulho e uma força nacional e precisamos ter a mesma grandeza nas políticas públicas, que, felizmente, superaram o negacionismo e que têm o desafio de avançar para uma política de Estado de longo prazo que vincule a ciência e a sua transformação em capacidade produtiva e de inovação aos grandes desafios nacionais. Fica claro que essa perspectiva é viável e necessária. Na história da saúde no Brasil, o vínculo da ciência com o bem-estar social é refletido em contribuições marcantes, como a descoberta da Doença de Chagas, da relação entre a infecção pelo zika vírus e a microcefalia em crianças, assim como a própria concepção do SUS. Todos esses avanços foram fruto de um extenso trabalho de pesquisa orientado aos grandes desafios nacionais.
Diante desta potência científica, não podemos mais aceitar passivamente o déficit de 22 bilhões de dólares na balança comercial brasileira da saúde, que se concentra em setores de alta tecnologia. Precisamos superar o chamado “complexo de vira-latas” e reconhecer o valor da ciência desenvolvida no Brasil. Quando o conhecimento se transforma em inovação, ganhamos autonomia e conseguimos gerar benefícios concretos para a nossa população. O fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil é fundamental, especialmente na perspectiva de que é a demanda da sociedade que deve orientar a economia — e não o contrário.
Políticas públicas sistêmicas e estruturais, que articulam as compras públicas, o financiamento público e privado, a regulação e a valorização do trabalho científico são essenciais para promover melhorias na qualidade de vida, tendo a ciência como protagonista e vetor de um novo projeto desenvolvimento para o Brasil.
Construímos soberania e contribuímos com a saúde global ao investir no desenvolvimento científico, tecnológico e produtivo nacional. O SUS, a ciência e a produção local foram decisivas para o enfrentamento da Covid-19 e continuarão sendo essenciais para garantir o direito à vida diante dos desafios impostos pela revolução tecnológica em curso. A experiência acumulada pela ciência brasileira no campo da saúde, articulando conhecimento, tecnologia e produção local às demandas do SUS, representa um modelo concreto para a construção de um novo padrão de desenvolvimento, capaz de superar os privilégios históricos e enfrentar os desafios da equidade e da soberania nacional.
Carlos A. Grabois Gadelha é coordenador do grupo de pesquisa Desenvolvimento Sustentável, CT&I e Complexo Econômico-Industrial da Saúde (GPCEIS/CEE-ENSP/Fiocruz) Artigo divulgado originalmente no Jornal da Ciência, em 17/10/2025.


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