Caminhos para o fortalecimento das políticas de desenvolvimento produtivo e da soberania nacional
As compras públicas e o poder de compra do Estado têm papel fundamental em uma política nacional de desenvolvimento voltada ao bem-estar social e no fortalecimento da capacidade de produção e inovação em Saúde no país. Esse entendimento orientou as exposições dos integrantes da mesa Avaliação e perspectivas da Política de Desenvolvimento Produtivo e outras políticas de ampliação do acesso com ganhos de tecnologia, realizada no Abrascão, em 22/11/2022. A mesa reuniu a economista e professora Júlia Paranhos, do grupo de Economia e Inovação da UFRJ, e o economista e coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), Carlos Gadelha, com mediação do professor Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Abrasco.
Júlia Paranhos trouxe uma análise sobre as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), modalidade de compra pública, como instrumento voltado a produção e inovação e sua articulação com o conceito de Complexo Industrial da Saúde – que entra na pauta governamental a partir de 2008, conforme ressalta. Júlia localiza “avanços importantes” nas PDPs, no que diz respeito ao papel da capacitação local no atendimento das demandas de saúde – “as PDPs são muito importantes para viabilizar produtos de alto valor” –, mas aponta desafios a serem superados.
“Um dos problemas que identificamos no desenrolar das políticas é que a PDP torna-se quase um instrumento exclusivo para o desenvolvimento do setor Saúde, quando é necessário contarmos com um mix de instrumentos, de forma a resolver nossa diversidade e complexidade de demandas, como dependência externa, baixa inovação local, baixa produção local de insumos farmacêuticos ativos (IFAs), desabastecimento de determinados medicamentos, necessidade de medicamentos para doenças negligenciadas”, entende.
Julia destacou que os laboratórios públicos do país – entre eles Bio-Manguinhos, da Fiocruz, e Instituto Butantan, “que revelaram grande capacidade tecnológica para produzir as vacinas contra a Covid-19” – fortaleceram-se, em grande medida, por conta das PDPs. No entanto, observa, o conjunto desses laboratórios – 18, no Brasil – apresenta grande heterogeneidade, a maior parte deles com dificuldade de obtenção de recursos e de dar conta de estabelecer as parcerias. “Não podemos ter laboratórios sem condições, mas querendo fazer essas parcerias para conseguir receita extra, por não terem orçamento para fortalecer sua capacidade produtiva, inovativa”, observou Júlia, contabilizando que 44 PDPs foram assinadas pela Fiocruz, em Farmanguinhos e Bio Manguinhos, e onze, no Butantan.
Tivemos fortalecimento do setor farmacêutico nacional, mas somos ainda muito dependentes de farmoquímicos estrangeiros (Júlia Paranhos)
“Não seria o caso de diversificar as atividades dos laboratórios públicos, uns com foco mais em pesquisa, outros, em produções mais específicas, outros, ainda, no desenvolvimento de inovação?”, indagou. “É algo que precisamos discutir”.
“Temos metade dos produtos que o Ministério da Saúde considera estratégicos para o país sem proposta de PDP”, contabilizou. “Tivemos fortalecimento do setor farmacêutico nacional, mas somos ainda muito dependentes de farmoquímicos estrangeiros”.
Para Júlia, as PDPs devem ser defendidas e valorizadas, “mas não são solução para tudo” e é preciso haver, do lado da Saúde, mais clareza de prioridades para uma retomada da política industrial e de CT&I, com foco no longo prazo. “Não adianta haver mais de cem PDPs formadas e problemas não atendidos. É preciso visão sistêmica e políticas de construção de instrumentos voltados a atender às diferentes demandas”, propôs.
Em um pequeno resgate histórico, a pesquisadora destacou que, no início dos anos 2000, era possível observar definições que vinham das políticas de Saúde, quanto a medicamentos prioritários, doenças prioritárias, e que permitiam a articulação com a política industrial. Com o desenrolar dos anos, apontou, veio se perdendo. “Complexo Industrial da Saúde é um termo muito amplo. Quando jogamos para a área de Indústria e Inovação a definição de áreas prioritárias, pode caber qualquer coisa. Isso não é ruim, mas corremos o risco de não atender às demandas mais específicas da área da Saúde. Com mais objetividade e clareza, pelo lado da Saúde, é possível definir melhor os instrumentos a serem utilizados para cada demanda. Se se trata de produção local, o instrumento é um; se for desenvolvimento de um novo produto, o instrumento é outro”, explicou.
Ela lembrou, ainda, que o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis) –colegiado interdisciplinar criado pelo Ministério da Saúde, em 2008, extinto em 2019 e recriado em 2022, voltado a reduzir gargalos legais, tributários e financeiros, que geram dependência externa de produtos, equipamentos e tecnologia – é elemento central na articulação entre indústria e CT&I.
Júlia mencionou também as Encomendas Tecnológicas, outra modalidade de compra pública, pela qual a Fiocruz fez a aquisição da vacina da Astrazeneca contra a Covid-19, antes de ser concluída, mediante transferência de tecnologia. “Fizemos uma encomenda tecnológica ainda durante o desenvolvimento da vacina, mas não participamos da pesquisa e desenvolvimento desse produto. A encomenda tecnológica pode ser usada também para viabilizarmos o desenvolvimento de um produto, em todo o processo”, destacou.
Há uma agenda de futuro que está sendo construída agora, e não podemos perder essa oportunidade (Carlos Gadelha)
Carlos Gadelha iniciou sua exposição lembrando que tanto a vacina da Astrazeneca quanto a do Butantan contra a Covid-19 foram produzidas com base em plataformas tecnológicas de que as duas instituições de pesquisa já dispunham e que foram fruto de transferência de tecnologia. “Sem as tecnologias anteriores do Butantan e da Fiocruz, não haveria vacina contra a Covid no Brasil, o que causaria, em uma primeira estimativa, duzentas mil mortes a mais”.
Gadelha orientou sua fala pela indagação: “E a partir de agora?”, observando que estamos diante de uma grande oportunidade, que não deve ser perdida. Ele lembrou do lançamento, em 2008, no BNDES, pelo governo Lula, da Política de Desenvolvimento Produtivo para o Brasil, que considera o melhor desenho de política industrial, com a definição de cinco áreas prioritárias para o futuro do país, entre elas, o Complexo Industrial da Saúde, bem como da assinatura pelo presidente Lula do decreto de criação do Gecis. “Temos que dizer que toda essa história começou com ele [Lula]. E agora, usando suas palavras, temos que ser muito melhores do que fomos”, disse.
O pesquisdor destacou que o modelo do Gecis foi utilizado para organizar várias outras áreas. “Foi a primeira política industrial do mundo orientada por missão na área social. É um aprendizado imenso”.
Ele lembrou também do primeiro seminário “de peso” da área da Saúde, organizado por Carlos Lessa [então presidente do BNDES], em 2003. “Trouxemos para o seminário o conceito do Complexo, a partir do exemplo de uma UTI neonatal. Ali estava o Complexo: tinha equipamento, médico, farmacêutico, enfermeiro, assistência intensiva, imunossupressor, tecnologia da informação. Coisas muito diversas reunidas naquela sala e voltadas à população”, recordou, afirmando que, hoje, “não se faz atenção básica sem tecnologia digital, inteligência artificial, big data, vigilância genômica, para se chegar antes da doença”.
A definição de uma PDP para viabilizar, por transferência de tecnologia para Farmanguinhos, a fabricação no país de imunossupressores – medicamento vital para pessoas submetidas a transplantes de fígado e rins – também foi trazida à mesa por Gadelha. “A tecnologia foi internalizada no Brasil, na área de química, calçando o Programa Nacional de Transplantes, que é um dos mais exemplares do mundo”.
Conforme apontou, a PDP é um instrumento que manteve os laboratórios oficiais vivos. “Farmanguinhos estaria vivo sem PDP? Não. E Butantan? Não. Entre outros exemplos”, frisou, “Querem nos impor compras em que o preço é alto, dizendo: não é para o seu bico produzir determinada tecnologia. Temos que disputar, entrar no mercado para atender nossas demandas. Estamos vendo no Brasil o desabastecimento de analgésicos e antibióticos, entre outros. É preciso recuperar a missão original dos laboratórios públicos, sem abrir mão da disputa na ponta tecnológica e 4.0. Isso é o que vai permitir regular o mercado e atrair investimentos, na fronteira tecnológica, essencial para o acesso universal à saúde, para mantermos o SUS de pé”, analisou.
Para Gadelha, o momento é de “mergulhar no aprendizado institucional” adquirido até aqui, identificando-se acertos, erros e limitações, para partir rumo ao “Estado empreendedor”, citando o termo da economista italiana Mariana Mazzucato. “Estado empreendedor com trabalhadores sem carreira, sem estabilidade; Estado empreendedor sem gente empreendedora vinculada, sem um setor público empreendedor estável, não existe”.
Ele destacou que o presidente eleito registrou na carta divulgada antes das eleições, com propostas para o Brasil, bem como em seu programa de governo, que aposta no Complexo Econômico-Industrial da Saúde como um dos complexos decisivos para um novo projeto nacional de desenvolvimento. “É uma oportunidade de ouro, dada pelo presidente da república, em 2022”, ressaltou Gadelha. Ele leu um trecho da carta: “Vamos construir uma estratégia nacional para avançar em direção à economia do conhecimento”. E alertou: “A bola está quicando. Estamos discutindo um novo projeto para o nosso país, no qual o bem estar social e a sustentabilidade ambiental tornam-se um fim e não objeto de políticas compensatórias, para ficar no último capítulo da política de desenvolvimento”.
Conforme quantificou, é possível gerar mais 2 milhões de empregos no país só na atenção básica à saúde, de modo a universalizar esse nível de atenção. “Temos pesquisas que mostram que 70% dos profissionais de atenção básica não contam com um celular institucional. Como fazer economia digital, saúde digital, como entramos na atenção básica digital com esse grau de precariedade?”, indagou.
Para Gadelha, estamos em um momento decisivo e a perspectiva de um novo projeto de desenvolvimento só tem chance de vingar se vier como demanda da Saúde. “Não dá mais para recriarmos políticas industriais focadas apenas em alguns setores, sem dialogar com o impacto no bem-estar social e na sustentabilidade ambiental. Está na hora de fazer política industrial diferente, que não seja o da indústria pela indústria – no Brasil, a industrialização foi feita para muito pouca gente; a indústria do automóvel não se voltou à população brasileira, mas a um segmento muito estratificado e rico”, considerou.
“Está na hora de botar o modelo de desenvolvimento industrial de cabeça para baixo, com o social como premissa. O presidente Lula nos brindou com esse presente. Há uma agenda de futuro que está sendo construída agora, e não podemos perder essa oportunidade”.
Ao comentar as exposições, Reinaldo Guimarães observou que a Política de Desenvolvimento Produtivo, que tem como instrumento as PDPs, é “uma das políticas tributárias essenciais para as atividades finalísticas do Ministério da Saúde”, mas existem outras. Ele contabiliza seis políticas do ministério que precisam ser sinérgicas, articuladas, “a um nível que não têm sido”, entre elas, a política de incorporação de tecnologias, estabelecida pela Lei 12.401/2011; a política de controle de preços de medicamentos – “que é do âmbito sanitário, embora tenha impacto na indústria”; a política industrial e a política de propriedade intelectual. “Esse conjunto de políticas, do ponto de vista de pensar para frente, mesmo em um governo que virá depois do Lula 3, deve ter um grau de integração muito maior do que tem hoje”, considerou.
Para ele, essa maior integração pode se dar pela criação de um grupo executivo situado na Casa Civil da Presidência da República. “Isso não vai funcionar se ficar somente dentro do Ministério da Saúde”, alertou, referindo-se ao fato de as políticas estarem situadas não só no ministério como fora dele. Esse “caráter executivo”, observou Reinaldo, está presente em outros setores, como o da indústria e comércio “Seria importante estabelecermos para a política de desenvolvimento produtivo algo parecido, no âmbito da Casa Civil”, propôs.