O Sul Global se levanta em uníssono neste início de 2024: Não Alinhados e G-77+China sob a mesma presidência
O Sul Global acaba de realizar neste janeiro aquela que possivelmente será sua maior manifestação política em 2024: a reunião conectada dos seus dois maiores movimentos globais, o Movimento dos Não Alinhados (MNA) e o G-77+China, incluindo o 3º South Summit (3ª Cúpula do Sul). Eles reúnem mais de 150 países do mundo e são os maiores blocos plurilaterais atuando mundialmente, com ênfase no sistema ONU. O que pensa hoje o Sul Global sobre as principais questões mundiais? Como se coloca diante da imensa crise multidimensional (política, econômica, social, ambiental, ética – e evidentemente sanitária) que assola populações e o planeta? É o que pretendemos trazer ao debate neste curto artigo de reflexões a partir do trabalho de pesquisadores do Observatório de Saúde Global e Diplomacia da Saúde do Cris/Fiocruz.
A reunião back-to-back dos dois blocos foi realizada em Kampala, Uganda, país que assume a partir de agora a inédita presidência simultânea dessas duas estruturas políticas: a reunião do MNA de 17 a 20 de janeiro, e a reunião do G-77 e sua 3ª Cúpula do Sul (South Summit), dias 21 e 22 de janeiro.
Analisamos neste artigo os resultados das negociações e decisões dos chefes de Estado e de Governo das duas organizações, expressos nas respectivas declarações finais. Há muitas convergências entre eles, certamente pela matriz comum a ambos os blocos políticos. Contudo, por motivos a serem ainda entendidos, salta aos olhos a ausência do tema Saúde no documento da G-77 e sua presença mais robusta no documento dos Não Alinhados.
• 3ª Cúpula do Sul (3rd. South Summit)
As Cúpulas do Sul são consideradas os espaços políticos supremos de tomada de posições políticas do G-77. A Primeira e a Segunda Cúpulas foram realizadas em Havana, Cuba, de 10 a 14 de abril de 2000, e em Doha, Qatar, de 12 a 16 de junho de 2005, respectivamente. Passaram-se 19 anos para que finalmente a 3ª Cúpula do Sul fosse realizada.
Por essa razão, havia enorme expectativa quanto a seus resultados, assim como por causa da rotatividade das presidências do G-77 e MNA, coincidindo que a República de Uganda detivesse, a partir de 2024, a presidência de ambos os blocos políticos.
Com a decisão tomada durante a Cúpula do G-77 sobre o papel da ciência, tecnologia e inovação, realizada em Havana entre 15 e 16 de setembro de 2023, na qual o G-77 e o MNA se comprometeram a reativar o Comitê de Coordenação do G-77 e do Movimento dos Não Alinhados (JCC), depois de nove anos interrompido, Uganda também estará à frente desse Comitê.
Portanto, a 3ª Cúpula do Sul foi realizada em Kampala, Uganda, entre 21 e 22 de janeiro de 2024, para celebrar o 60º aniversário do G-77 e marcar uma retomada intensa da presença do Sul Global no cenário político internacional. Com o não deixar ninguém para trás, reuniu mais de 130 países para articular e promover os seus interesses coletivos e para melhorar sua capacidade de negociação conjunta dentro do sistema da ONU.
Contando com a presença de inúmeros chefes de Estado e de Governo dos dois blocos, e outros dignatários, além do secretário geral da ONU, António Guterres, do presidente da Assembleia Geral, Dennis Francis, e da diretora do UNOSSC, Dima Al-Khatib, a 3ª Cúpula do Sul foi marcada por reafirmações de fortalecimento da cooperação Sul-Sul, principalmente nas áreas do comércio, investimentos, desenvolvimento sustentável, alterações climáticas, erradicação da pobreza e economia digital.
Documento final da 3ª Cúpula do Sul
O documento final da 3ª Cúpula do Sul[1] está constituído de alentados 156 parágrafos e quase 12 mil palavras, negociados ao longo de meses pelas chancelarias até tomar sua forma final em Kampala. Destaca a importância e as características únicas da cooperação Sul-Sul, enfatizando a solidariedade entre os países do Sul, que contribui para alcançar os ODS e a manter a soberania nacional.
No documento, os Estados-Membros reafirmaram que a reforma da arquitetura financeira internacional deveria refletir as necessidades e prioridades dos países em desenvolvimento, especialmente dos países menos desenvolvidos, países em desenvolvimento sem litoral, países em desenvolvimento que são pequenas ilhas e os países de renda média[2]. Essa reforma deveria incluir uma solução duradoura e justa para a crise da dívida que muitos desses países enfrentam. Entendem ser necessário promover o interesse coletivo do G-77 e reforçar a sua capacidade de negociação conjunta na ONU.
O documento destaca que a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a Agenda de Ação de Adis Abeba (AAAA), o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, a Nova Agenda Urbana (NUA) e o Quadro de Sendai para a Redução do Risco de Desastres (DRR) devem ser implementados na sua totalidade, em conformidade com os princípios do multilateralismo e da cooperação internacional.
Reafirmam a necessidade de reforçar o papel da AGNU e do Ecosoc no encaminhamento da reforma da arquitetura financeira internacional. Explicitam que os bancos multilaterais de desenvolvimento devem avaliar as necessidades de financiamento de todos os países em desenvolvimento, incluindo países de baixa e média renda, através de financiamento concessional e subvenções. Uma das soluções propostas seria trocar as dívidas para que os países possam focar nos ODS, incluindo trocas de dívida para investir no clima e na natureza, assim como em políticas de proteção social, saúde e educação.
O documento reconhece o papel do Unossc como articulador da Cooperação Sul-Sul no sistema da ONU e destaca os compromissos com vários acordos de alto nível sobre o tema, incluindo as decisões do Comité de Alto Nível para a Cooperação Sul-Sul, apelando por um aumento do apoio da comunidade internacional para a sua implementação. Em contrapartida, os países se comprometeriam a apoiar o sistema de desenvolvimento da ONU e o sistema dos Coordenadores Residentes para que estes possam exercer seu apoio e ampliar seus esforços para implementar a Agenda 2030.
Há inclusive um apelo para que sejam ampliadas as iniciativas de Cooperação Sul-Sul do Unossc, das Comissões Regionais da ONU, das Agências Especializadas, dos Fundos e dos Programas, dentro dos seus respectivos mandatos, em apoio aos países em desenvolvimento. Além disso, destaca a importância da cooperação triangular, que apoia iniciativas Sul-Sul através de vários meios, incluindo o desenvolvimento de capacidades e a transferência de tecnologia.
Outros destaques do documento são:
A crise do multilateralismo, que se expressa por sua incapacidade de manter a paz no mundo, lembrando que prevenir o planeta de guerras e genocídios foi o motor de criação da ONU no pós-Segunda Guerra. Os países afirmaram que a paz é a condição fundamental para o desenvolvimento sustentável e para a promoção dos direitos humanos.
O fim do embargo a Cuba, imposto pelos EUA há seis décadas – tema que permeou toda a presidência cubana do G-77, em 2023 – continua sendo objeto da ação política do G-77.
Os países reafirmam a necessidade de construção de uma ordem internacional justa, equitativa, estável e de paz – objetivos que estão mais ameaçados do que nunca pela ordem internacional gerida pelas grandes potências – e clamam pelo fim do crescimento de políticas unilaterais que ameaçam o multilateralismo.
Reforma urgente da arquitetura financeira internacional, que é inadequada aos desafios globais atuais. As Instituições Financeiras Internacionais devem atuar em acordo com os princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas e apoiar o desenvolvimento e a implementação da Agenda 2030, e não o contrário. Atualmente, os serviços das dívidas dos países em desenvolvimento impedem investimentos na implementação dos ODS. Os países pedem o realinhamento da quota-parte do FMI e a realização da revisão das participações do Banco Mundial para melhor refletir as posições relativas dos membros na economia mundial; e afirmam que a estrutura existente de encargos e sobretaxas do FMI é ineficiente, uma vez que funciona de forma procíclica e injusta, e leva a que os países com maiores dificuldades suportem os mais pesados encargos financeiros. Instam que o FMI a suspenda a política de sobretaxas com efeitos imediatos.
Ressaltam a importância da Ajuda Oficial ao Desenvolvimento (AOD) e da destinação pelos países desenvolvidos dos 0,7% de seus PIB à prática, um acordo feito há mais de 50 anos e nunca cumprido.
Retomada das negociações sobre o mecanismo de taxação para a cooperação internacional no âmbito das Nações Unidas.
Reforma da OMC e a construção de um sistema de comercio internacional justo e que contribua para os ODS; os países rechaçaram o aumento do protecionismo pelos países mais desenvolvidos.
Impulso à industrialização dos países menos desenvolvidos e a importância dos mecanismos de incentivo e suporte, como a transferência de tecnologia e o apoio ao desenvolvimento de infraestrutura digital e a conectividade.
Desenvolvimento de um sistema de ciência, tecnologia e inovação que leve em conta as especificidades dos menos desenvolvidos e que tenha como objetivo o incentivo ao cumprimento dos ODS.
Afirmam a atualidade dos princípios da cooperação Sul-Sul que configuram manifestação de solidariedade entre as pessoas e países do Sul e que contribui para o bem-estar, a autoconfiança coletiva e o cumprimento dos ODS de acordo com os planos e prioridades nacionais.
Por fim, abordam outros temas relevantes, como equidade de gênero, erradicação da pobreza e afirmação da importância e do papel dos povos originários no desenvolvimento sustentável, afirmam apoio às diversas resoluções e iniciativas que visam à mitigação e adequação às mudanças climáticas reconhecendo que: a “Terra e seus ecossistemas são nosso lar e estamos convencidos que, para obter um equilíbrio justo entre as necessidades econômicas, sociais e ambientais das gerações presentes e futuras, sendo imprescindível promover a harmonia entre a natureza e a Terra”.
Apesar de todas as pertinentes posições do G-77, é impossível deixar de notar que entre os 156 parágrafos do documento final não há ao menos um dedicado a saúde e apenas seis menções à palavra saúde, o que surpreende, já que os países menos desenvolvidos ainda padecem das consequências da pandemia de Covid-19 e os especialistas alertam e discutem a possível e provável ocorrência de uma nova pandemia no futuro, oriunda do processo de mudança climática e degradação ambiental.
Atores relevantes na 3ª Cúpula do Sul e manifestações do Brasil
Na sequência, destacamos algumas intervenções das lideranças do sistema multilateral que estavam presentes.
António Guterres[3], secretário-geral da ONU, afirmou que o G-77 tem sido um motor da cooperação e do desenvolvimento Sul-Sul. Uma voz poderosa para os países em desenvolvimento e que vem contribuindo para retirar milhões de pessoas da pobreza. Em seu pronunciamento, ressaltou a ideia de esgotamento do sistema de governança global atual, fez críticas ao Conselho de Segurança da ONU (segundo ele, paralisado por divisões geopolíticas) e às instituições de Bretton Woods (que refletem uma estrutura de poder ultrapassada) e defendeu uma revitalização do multilateralismo para que sirva aos desafios do mundo atual.
Dennis Francis, presidente da Assembleia Geral, apelou às organizações multilaterais, incluindo a ONU e as instituições financeiras internacionais para embarcarem em reformas urgentes que impulsionem e destaquem a importância da Cooperação Sul-Sul, já que o século XXI não deve replicar as vastas desigualdades do século XX e todos devem aproveitar as oportunidades da Cooperação Sul-Sul e triangular.
De acordo com Dima Al-Khatib, diretora da Unossc, o tema da Cúpula do Sul, não deixar ninguém para trás, fortalece o compromisso coletivo da Unossc, com a inclusão. É um apelo à ação e um apelo para fortalecer e impulsionar a Cooperação Sul-Sul. No entanto, não deixar ninguém para trás exige esforços coletivos, e a cooperação Sul-Sul é uma ferramenta importante para atingir esse objetivo e fechar a lacuna dos ODS. Mas o Sul Global sofre com diversas crises interligadas que ameaçam o desenvolvimento sustentável. O compromisso do Unossc de promover, coordenar e apoiar a cooperação Sul-Sul em nível mundial e dentro do sistema ONU está alinhado aos objetivos da 3ª Cúpula do Sul.
Carlos Correa, diretor executivo do Centro Sul[4], reafirmou que os países em desenvolvimento continuam a enfrentar sérios obstáculos, bem como desafios novos e emergentes, na implementação e cumprimento da Agenda 2030. Apesar de já termos ultrapassado a metade do prazo de 2030, o progresso continua lamentavelmente fora do caminho, com mais de 30% dos ODS estagnados ou mesmo em retrocesso. Ao mesmo tempo, o défice anual de financiamento dos ODS aumentou de 2,5 biliões de dólares, antes da pandemia do Covid-19, para cerca de 4,2 biliões de dólares, hoje. Essa situação é extremamente preocupante e exige que a comunidade internacional encontre soluções inovadoras e equitativas que permitirão aos países em desenvolvimento garantir a proteção dos mais pobres e mais vulneráveis. Embora não seja um substituto da cooperação Norte-Sul, a cooperação Sul-Sul é um mecanismo importante para os países em desenvolvimento colaborarem e promoverem o desenvolvimento sustentável. Finalizou ressaltando que a Cooperação Sul-Sul deve ser fortalecida, dando maior apoio às próprias instituições do Sul, incluindo o Centro Sul, o G-77, o Movimento dos Não Alinhados e as diversas instituições regionais e inter-regionais.
Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores do Brasil[5], definiu claramente a posição brasileira sobre um dos temas da Cúpula, a reforma da governança global: “As atuais instituições multilaterais, em grande parte criadas há mais de 75 anos, refletem um sistema internacional e uma ordem mundial que não mais existem. Essas instituições não são mais capazes de lidar com os desafios multidimensionais que o mundo enfrenta atualmente. Precisamos de uma reforma urgente do sistema internacional para torná-las mais representativas, legítimas e eficazes. Nesse sentido, referiu-se ao Conselho de Segurança, às Instituições Financeiras Internacionais e à OMC. Com o entendimento que os países desenvolvidos têm, a responsabilidade primária pelo financiamento para o desenvolvimento, inclusive por meio da cooperação internacional, cobrou a alocação de 0,7% de seus PIBs para a Assistência Oficial ao Desenvolvimento (ODA) e os US$ 100 bilhões anuais iniciais em financiamento climático.
Recordando o princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas, o ministro pede ao G-77 para reiterar o compromisso com a plena implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, da Agenda de Ação de Adis Abeba, do Acordo de Paris adotado sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e de todos os outros documentos pertinentes. Pede o fim das medidas coercitivas unilaterais e sanções ilegais e injustas, que aprisionam e punem muitos países em desenvolvimento, destacando o caso de Cuba, e lamenta a guerra em Gaza e a piora sistemática da situação no Oriente Médio. Defende a solução dos dois Estados (Palestina e Israel), o imediato e permanente cessar-fogo e que o conflito não se estenda aos demais países da região pelo enorme risco que isso traria à segurança regional e global.
Anuncia que, durante a presidência do G20, o Brasil colocará as preocupações, interesses e necessidades dos países em desenvolvimento no centro da agenda, e que vai propor uma Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. Finaliza reiterando o compromisso do Brasil com a cooperação Sul-Sul e com o bem-estar e prosperidade dos países e povos do Sul.
O chanceler brasileiro aproveitou a reunião em Uganda para ter encontros bilaterais com os ministros de Relações Exteriores da Tunísia, Nabil Ammar[6], de Camarões[7], Lejeune Mbella Mbella, e da Autoridade Palestina, Riad Malki, que agradeceu o apoio do presidente Lula à ação proposta pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, em defesa da população civil de Gaza. Reuniu-se ainda com o chanceler de Bangladesh, Hasan Mahmud; com o ministro de Relações Exteriores do Benim, Olushegun Adjadi Bakar, com quem discutiu a abertura da embaixada daquele país em Brasília; e com o vice-chanceler do Laos, Phoxay Khaykhamphithoune, com quem discutiu a intensificação do processo de aproximação entre o Brasil e a Asean[8].
• 19ª Cúpula do Movimento dos Não Alinhados (MNA)
O Movimento dos Não Alinhados começou formalmente em 1955, num momento dividido da história. Em meio à Guerra Fria, seus arquitetos – líderes como Sukarno (Indonésia), Nehru (Índia), Tito (Iugoslávia) e Nasser (Egito), entre outros – a partir da Conferência de Bandung[9], trabalharam para promover a cooperação, apoiar os países no caminho da descolonização total, impulsionar o comércio e o desenvolvimento econômico no Sul Global, defendendo os pilares da paz – diálogo, diplomacia e cooperação.
A 19ª Cúpula dos Não Alinhados insere-se em outro momento de profunda divisão, no qual as tensões geopolíticas globais estão no seu ápice em muitas décadas, a democracia está profundamente ameaçada pelo populismo de extrema-direita (uma assustadora internacional nacional-populista), a crise do clima aproxima-se de um cataclisma, a pobreza e as desigualdades alcançam patamares jamais vistos.
O mundo em desenvolvimento enfrenta seu crescimento econômico mais fraco em décadas, e inúmeros países do Sul estão esmagados por juros escorchantes de dívidas externas, impostos pelas instituições de Bretton Woods.
Os direitos humanos, o direito internacional, as Convenções de Genebra e a Carta das Nações Unidas vêm sendo desrespeitados impunemente por países poderosos e os conflitos estão se alastrando e proliferando – do Sudão à Ucrânia e Gaza.
Documento final da 19ª Cúpula dos Não Alinhados
O documento final da Cúpula dos Não Alinhados[10], com o lema Aprofundar a cooperação para a riqueza global partilhada, é um constituído de um longo preâmbulo, seguido de 47 parágrafos, totalizando cerca de 4,5 mil palavras.
Trata de temas muito caros ao Movimento, expressados ao longo de décadas e reiterado sob a presidência do Azerbaijão (desde 2019) em diversas oportunidades, particularmente no âmbito das Nações Unidas: defender, preservar e promover os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e os princípios do direito internacional; defender os princípios da soberania e da igualdade dos Estados, da integridade territorial, do respeito mútuo, da não intervenção e da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados, e da resolução pacífica de litígios; e os esforços dos Estados para alcançar maior desenvolvimento econômico e progresso social, paz e segurança, e gozo dos direitos humanos e do Estado de direito.
Salientando a importância de reforçar o multilateralismo, não se furta, contudo, de pedir uma reforma abrangente da arquitetura de governança global multilateral, incluindo as Nações Unidas e as instituições financeiras internacionais, assim como dos bancos multilaterais de desenvolvimento, para “os tornar adequados aos seus objetivos, democráticos, equitativos, representativos e receptivos às atuais realidades globais e às necessidades e aspirações do Sul Global”. Ademais, defende a reforma do Conselho de Segurança, com a entrada de países do Sul Global (incluindo países africanos) e a revitalização da Assembleia Geral.
Reafirmam o compromisso com a promoção e proteção dos direitos humanos, universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, de acordo com os compromissos internacionais e as leis nacionais, através de um diálogo internacional construtivo e cooperativo, do reforço de capacidades, da assistência técnica e do reconhecimento de bons práticas, assegurando ao mesmo tempo o pleno gozo de todos os direitos humanos, incluindo o direito ao desenvolvimento como um direito inalienável, fundamental e universal.
Propugna a plena implementação da Agenda 2030, defendendo que a erradicação da pobreza, em todas as suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema, deve continuar a ser a peça central. Para tal, defende “iniciativas eficazes, abrangentes e duradouras para os problemas da dívida dos países em desenvolvimento”.
O MNA reivindica a reforma da arquitetura financeira internacional e o reforço do sistema financeiro internacional, para que seja adequado à sua finalidade e ajude os países em desenvolvimento a enfrentar melhor as atuais crises múltiplas e a melhorar a coordenação das políticas financeiras e econômicas em nível internacional. Exige a ampliação da participação e da representação dos países em desenvolvimento na tomada de decisões econômicas internacionais e na definição de normas e na governação económica global. Apela por uma solução abrangente e duradoura para a dívida externa dos países em desenvolvimento, em particular dos países africanos, de forma sustentável, incluindo o cancelamento ou a reestruturação das mesmas.
Os Não Alinhados comprometem-se a trabalhar por um sistema comercial multilateral universal, baseado em regras, aberto, transparente, previsível, inclusivo, justo, não discriminatório e equitativo, com a OMC no seu núcleo, e evitando medidas comerciais protecionistas unilaterais, incluindo as baseadas em questões ambientais ou relacionadas com o clima.
Garantias de igualdade de gênero e do empoderamento das mulheres e meninas; contra a violência contra as mulheres; condenação de todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância conexa, bem como “do ressurgimento e glorificação de ideologias políticas extremistas, como o fascismo, o nazismo, o neonazismo e outras de natureza semelhante”, além de prevenir e combater todas as formas de escravidão, receberam destaque no documento de Kampala.
Uma posição permanentemente defendida pelo MNA, reafirmada em Kampala, tem sido o desarmamento nuclear, a eliminação total das armas nucleares e a não proliferação nuclear em todos os seus aspectos, essencial para o fortalecimento da paz e da segurança internacionais, segundo o Movimento.
Outra posição clássica dos Não Alinhados desde o auge da Guerra Fria e reiterada na reunião – é a utilização do espaço exterior para fins exclusivamente pacíficos, opondo-se a e rejeitando qualquer ato que o negue ou viole, e o apoio contínuo à prevenção de uma corrida armamentista no espaço sideral, incluindo a proibição de instalar ou usar armas nesse espaço.
Extremamente preocupados com os conflitos militares que se alastram no continente africano, apelam às Nações Unidas e à comunidade internacional pela intensificação do apoio às operações de paz lideradas pela União Africana, garantindo um financiamento previsível, adequado e sustentável às operações de paz lideradas pela UA e autorizadas pelo Conselho de Segurança.
Condenação veemente do terrorismo em todas as suas formas e manifestações; combate a todas as formas de crime organizado transnacional; prevenção e combate a todos os aspectos e dimensões do tráfico de drogas; e ao comércio ilícito de armas, ocuparam muitos parágrafos do documento de Kampala.
A defesa da causa palestina (aliás, nos últimos 60 anos), “para pôr fim ao colonialismo, à opressão, à ocupação e à dominação no Território Palestiniano Ocupado” e a condenação dos ataques de Israel na faixa de Gaza e das interferências na Cisjordânia, ocuparam expressivo número de parágrafos da Declaração. O MNA pede o cessar-fogo e o cumprimento das resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o conflito. Defende resolutamente a solução dos dois Estados. Ademais, declara apoio à iniciativa da África do Sul, que é um dos Estados-membro do Movimento, na sua petição ao Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas em Haia contra Israel, invocando a Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio em relação aos palestinos na Faixa de Gaza.
Comprometem-se com continuar a reforçar a cooperação Sul-Sul, Norte-Sul e triangular, e expressam preocupações e propostas quanto a: plena concretização da igualdade de gênero e do empoderamento das mulheres e meninas, das raparigas migração internacional, a crise alimentar que vive o planeta, a importância da valorização da cultura e práticas das populações indígenas e originárias, a igualdade de gênero e a plena participação das mulheres em todas as esferas.
A África recebe atenção e menções especiais do MNA, com grande destaque para as injustiças de que se sente vítima no campo do comércio internacional, assim como para a segurança alimentar e nutricional e para o desenvolvimento rural.
Os desafios da migração irregular e o combate ao contrabando de migrantes e tráfico de pessoas estão presentes de forma veemente no documento de Kampala.
Finalmente, na área da saúde, manifesta profunda preocupação com a ameaça representada pelo surgimento e propagação de pandemias e emergências sanitárias, incluindo a Covid-19, a doença do vírus Ebola, a gripe suína A (H1N1) e a gripe aviária (H5N1), que produziram ou têm potencial para causar impactos graves, não apenas na saúde pública mundial, mas também nas economias regionais e nacionais.
Daí, apelam por uma cooperação e coordenação reforçadas em nível nacional, regional, sub-regional e internacional, para dar prioridade à prevenção, preparação e resposta a pandemias. Apoiam o processo de negociação intergovernamental do instrumento internacional da OMS sobre o tema, reafirmando a importância do princípio da equidade e a garantia do acesso universal, oportuno, equitativo e sem entraves a insumos médicos seguros, eficazes, de qualidade e acessíveis, tais como vacinas, medicamentos, equipamentos médicos, testes de diagnóstico e outras tecnologias de saúde, especialmente nos países em desenvolvimento, incluindo os países de baixo e médio rendimento.
António Guterres, secretário geral da ONU, que discursou na sessão de abertura do importante evento em Kampala, apontou “uma clara convergência entre os princípios da Carta das Nações Unidas e os princípios de Bandung do Movimento dos Não Alinhados”. Referiu-se também ao papel importante do MNA nas Nações Unidas, como contribuintes significativos para as forças de manutenção da paz da ONU, como defensores da Carta das Nações Unidas, do direito internacional e dos direitos humanos, e apoiadores incontestes da eliminação das armas nucleares. Comovido, declarou os países integrantes do MNA como campeões da solidariedade em tempos de crise – inclusive durante e após a pandemia da Covid-19.
A diretora do Unossc, Dima Al-Khatib, manifestou-se em evento organizado pelo Banco Islâmico de Desenvolvimento (BIsD), o Centro-Sul, a Unctad e o Unossoc. Ela destacou a plataforma global de compartilhamento de conhecimento digital South-South Galaxy, que abriga mais de 900 boas práticas Sul-Sul, conta com 500 membros e é um excelente recurso para os países em desenvolvimento. Disse, ainda, que a 3ª Cúpula do Sul reacendeu a agenda comum e o apelo coletivo à ação e à solidariedade em diferentes tópicos. Dados os complexos desafios e crises globais, o Unossoc declarou-se pronto para compartilhar os seus serviços de apoio a processos intergovernamentais, gestão do conhecimento e também apoio aos Estados-Membros na realização de projetos de cooperação Sul-Sul através do sistema das Nações Unidas.
Considerações finais
Diferente do momento geopolítico do início dos anos 2000, quando os emergentes entravam na disputa por mais espaço nas relações internacionais e os países do Sul realizaram as duas primeiras cúpulas do Sul, o contexto geopolítico atual é marcado pelas crises múltiplas, entrelaçadas e agravadas pelo conflito no Oriente Médio, que explicitou o esgotamento do multilateralismo. Esse quadro aponta para uma queda da hegemonia norte-americana e ascensão do Sul Global em torno da liderança da China, que busca ampliar alianças com países em desenvolvimento e participar dos seus espaços políticos. A realização da terceira cúpula nesse momento, 19 anos depois da última, pode marcar um novo momento de retomada do protagonismo do Sul.
* Regina Ungerer, doutora em Ciências, integrante da equipe do Cris/Fiocruz; Erica Kastrup, doutora em História das Ciências e da Saúde, analista do Cris/Fiocruz; Tiago Nery, doutor em Ciência Política, pesquisador do Laboratório de Análise Política Mundial; Paulo Buss, coordenador do Cris/Fiocruz. O artigo será publicado nos Cadernos Cris, em 8/2/2024.
[1] Disponível em: https://www.G-77.org/doc/3southsummit_outcome.htm
[2] Estes grupos de países reúnem-se para defender seus interesses particulares no âmbito das Nações Unidas, em arranjos políticos que crescem de importância na medida em que se consolidam e são reconhecidos nas suas reivindicações, pelo menos no plano político discursivo e retórico
[3] Discurso na íntegra disponível aqui: https://www.un.org/sg/en/content/sg/statement/2024-01-21/secretary-generals-remarks-the-third-south-summit-G-77-plus-china-delivered
[4] Discurso na íntegra disponível aqui: https://www.southcentre.int/south-centre-statement-for-3rd-south-summit-21-23-january-2024
[5] Ver a íntegra do discurso neste Caderno. Fonte: https://www.gov.br/mre/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/discursos-artigos-e-entrevistas/ministro-das-relacoes-exteriores/discursos-mre/mauro-vieira/discurso-do-ministro-mauro-vieira-na-iii-cupula-do-sul-do-g-77-china
[6] https://twitter.com/ItamaratyGovBr/status/1749043714272436532
[7]https://twitter.com/ItamaratyGovBr/status/1749425549036880351?ref_src=twsrc%5Egoogle%7Ctwcamp%5Eserp%7Ctwgr%5Etweet
[8] O comércio brasileiro com os dez países do grupo do Sudeste Asiático, que, em 2002, era de US$ 2,9 bilhões, ampliou-se para US$ 34 bilhões em 20 anos que está entre as prioridades da Política Externa Brasileira. Ver: https://twitter.com/ItamaratyGovBr/status/1749048118388154642
[9] A Conferência de Bandung foi uma reunião de 29 países asiáticos e africanos realizada na Indonésia, entre 18 e 24 de abril de 1955, com o objetivo de construir uma nova força política global (depois caracterizado como Terceiro Mundo), visando a promoção da cooperação econômica e cultural afro-asiática, como forma de oposição ao que era considerado colonialismo ou neocolonialismo, por parte dos Estados Unidos e da União Soviética. Foram 15 países da Ásia (Afeganistão, Birmânia, Camboja, Ceilão, República Popular da China, Filipinas, Índia, Indonésia, Japão, Laos, Nepal, Paquistão, República Democrática do Vietnã, Vietnã do Sul, e Tailândia); oito, do Oriente Médio (Arábia Saudita, Iêmen, Irã, Iraque, Jordânia, Líbano, Síria e Turquia); e apenas seis, da África (Costa do Ouro (atual Gana), Etiópia, Egito, Líbia, Libéria e Sudão), porque, à época, a maior parte dos atuais países africanos ainda eram colônias europeias.
[10] Ver: https://www.yowerikmuseveni.com/non-aligned-movement-summit-final-document-kampala-declaration (em inglês).