Proteção social é direito e pilar fundamental para a construção do estado de bem-estar
“A proteção social é um direito fundamental para o exercício de outros direitos, como os de saúde, de educação e para consolidação de um estado de bem-estar social. É, portanto, papel-chave na redução da pobreza e da desigualdade”. A afirmativa é da diretora da Divisão de Desenvolvimento Social da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Laís Abramo, nodebate on-line O futuro da proteção social, realizado pelo CEE-Fiocruz, em 10/10/18. O evento, da série Futuros do Brasil e da América Latina, também contou com a participação da doutora em ciência política e pesquisadora sênior do CEE-Fiocruz Sonia Fleury e teve mediação do ex-ministro José Gomes Temporão, pesquisador do CEE-Fiocruz.
Laís destacou que a proteção social se dá em quatro vertentes articuladas – a não contributiva, referente à assistência, desvinculada do mercado de trabalho, em que os beneficiários são definidos por critérios como pobreza, faixa etária, pessoas com deficiência etc; a contributiva, vinculada diretamente à inserção no mercado de trabalho, e que dá por meio de aposentadorias e pensões para as quais o beneficiário contribuiu; de regulação do mercado de trabalho, relativa aos direitos trabalhistas, com legislação e serviços de fiscalização orientados a promover e proteger o trabalho decente; e a de sistemas de cuidado, fundamental num modelo de estado de bem-estar social, como observou Laís.
Acesse aqui a apresentação de Laís Abramo.
De acordo com a diretora da Cepal, essa última vertente perpassa todas as demais, uma vez que é necessário modificar-se um pressuposto no qual os modelos de proteção sempre se basearam, segundo o qual o homem era o provedor e a mulher, cuidadora. “A maior parte das prestações está vinculada a essa dicotomia e isso vem sendo transformado, pela inserção da mulher no mercado de trabalho e por um avanço da agenda de direitos que põe a mulher em outra posição na sociedade”, analisa Laís. “Há, portanto, a necessidade da articulação entre as diversas vertentes”, observou, destacando, ainda, a importância de os sistemas de proteção social articularem-se também com outras políticas sociais, como saúde, educação, habitação e infraestrutura.
Ter medidas políticas e ações que permitam desfazer barreiras e incorporar nesses sistemas mulheres negras, crianças e indígenas é fundamental (Laís Abramo)
Laís chamou atenção para a importância de um “universalismo sensível às diferenças”, para responder tanto às diferentes necessidades que se tem ao longo do ciclo de vida – crianças, jovens, adultos e idosos – quanto aos distintos grupos da população, como os indígenas, que muitas vezes enfrentam barreiras ao acesso às políticas universais. “A desigualdade social é um tema estrutural, histórico e renitente, e, portanto, existem populações que vivenciam simultaneamente essas múltiplas desigualdades e exclusões, mesmo com a existência de políticas universais. Ter medidas políticas e ações que permitam desfazer essas barreiras e incorporar nesses sistemas, mulheres negras, crianças e indígenas é fundamental”, disse.
Ela apresentou seis grandes desafios ao futuro da proteção social: o envelhecimento da população e as migrações, a persistência da pobreza e da vulnerabilidade à pobreza, trabalho decente insuficiente, desigualdades estruturais no mercado de trabalho (gênero, etnia, idade, origem territorial), desafios relacionados às mudanças tecnológicas e a “necessária transição” a uma economia baixa em carbono.
Crescimento econômico é fator importante, mas o que explica a redução das desigualdades é que, em grande número de países da região, foram desenvolvidas políticas de caráter redistributivo e de inclusão, rompendo paradigmas das duas décadas anteriores, de políticas focalizadas em oposição às políticas de caráter universal (Laís Abramo)
Em relação à pobreza, Laís chamou atenção para o processo de redução desses índices na América Latina, entre 2002 e 2014, de 46% para 28%. Já entre 2015 e 2016 foi registrado aumento, traduzindo-se em 18 milhões de pessoas a mais na pobreza, das quais 13 milhões em situação de extrema pobreza. “É muito importante pensar no que possibilitou aquela redução. Diz-se que é resultado do bom momento econômico, do boom das commodities. Achamos que o crescimento econômico é fator importante, mas o que explica a redução das desigualdades é que, em grande número de países da região, foram desenvolvidas políticas de caráter redistributivo e de inclusão no âmbito do mercado de trabalho e da proteção social, rompendo paradigmas das duas décadas anteriores, de políticas focalizadas de combate à extrema pobreza em oposição às políticas de caráter universal”.
Os programas de distribuição de renda, aponta Laís, passam a ter importância grande na luta contra a pobreza e tornam-se porta de entrada para a proteção social. “Na América Latina, uma em cada cinco pessoas recebe transferência, o que equivale a 30 milhões de domicílios e 132 milhões de pessoas. O custo desses programas equivale a 0,3% do PIB. É um programa barato. Já a sonegação fiscal na América Latina equivale a 6,7% do PIB”, destacou.
A pesquisadora Sonia Fleury, fez uma análise dos sistemas de proteção social na América Latina, a partir dos estudos que realizou sobre países da região. Ela lembrou que Uruguai, Argentina e Brasil foram pioneiros em assumir modelos de proteção social, já nos anos 1920, antes mesmo dos países nórdicos, que o fariam na década seguinte. No entanto, uma parte grande da população continuava excluída. “Não era a universalidade da cidadania, mas benefícios previdenciários ou de saúde vinculados a inserção no mercado de trabalho. Apesar de os modelos desses três países serem parecidos, havia diferença, por exemplo, no padrão de cobertura, no valor dos benefícios. O Brasil estava sempre muito pior, porque tinha uma classe trabalhadora com muito menos capacidade de organização e mobilização, dada sua heterogeidade”, analisou Sonia, observando que tal modelo de seguro nunca poderia se universalizar, por estar ligado à condição de trabalho. Um modelo de proteção social estratificado e excludente, conforme a pesquisadora definiu.
Nos anos 1980 e 1990, apontou Sonia, três reformas criaram modelos paradigmáticas de proteção social no continente latino-americano. A primeira delas foi a reforma chilena, de caráter estrutural – e não apenas de ajustes paramétricos –, que rompe com a relação existente entre Estado e classes empresariais e trabalhadoras. “Trabalhadores com capacidade contributiva são incentivados e até obrigados a se filiar a uma empresa de seguro privado e passam a contribuir. Seus empregadores, não. E o Estado também se desonera, passando a cuidar só dos mais pobres. Não faz regulação, deixando tudo na mão do mercado”. Só dez anos depois, o Estado passa a ser regulador, relatou Sonia, explicando que chamou esse modelo de dual – pobres com o Estado e os que tinham capacidade contributiva, com o mercado –, gerador de desigualdade e com custos elevados.
Já o Brasil fez movimento oposto às tendências daquele momento, com um sistema universal, estatal e público, constituindo-se o segundo paradigma. Quanto ao terceiro, Sonia citou o modelo colombiano, do final dos anos 1990, chamado de plural. “Tentam-se usar todos os recursos de mercado, como fez o Chile, mas com uma integração com o setor público e uma tentativa de reduzir o poder desse mercado, havendo algum nível de solidariedade entre eles”, explicou. “Os três modelos tiveram problemas muito grandes – e os do Brasil a gente conhece”, disse Sonia.
Todos haviam conseguido ampliar a cobertura, mas a estratificação se manteve. “O modelo dual, por suposto, era mesmo para ser estratificado. O modelo universal, que era o nosso, deveria acabar com a estratificação, mas houve a auto-exclusão de setores da classe média, patrocinada, inclusive, pelo Estado. No modelo plural, a junção dos dois pilares em dez anos não aconteceu, e a estratificação também se manteve”. De acordo com Sonia, a proteção social tende a reproduzir desigualdades. “Esse é o grande desafio: além de incluir, como a política social deixa de estar subordinada à lógica da discriminação e da estratificação, e passa a ser mecanismo de redistribuição e igualação”.
A austeridade é fator limitador, mas os atores políticos e as instituições, os valores existentes em relação a um direito consolidado fazem com que se tenha uma determinada capacidade de resistência, que vários países europeus demonstraram (Sonia Fleury)
A partir desse e outros estudos que realizou, a pesquisadora apontou tendências, uma delas, de que a austeridade econômica não afeta igualmente os sistemas de proteção social. “Depende da capacidade de resiliência, de resistência institucional e política”, observou. “A austeridade é fator limitador, mas os atores políticos e as instituições, os valores existentes em relação a um direito consolidado fazem com que se tenha uma determinada capacidade de resistência, que vários países europeus demonstraram”.
Em relação à situação brasileira, Sonia indagou em que medida o país não conseguiu a adesão da população ao sistema de bem-estar social criado na democracia. “Acho que isso tem a ver com a qualidade do serviço, com o sofrimento imposto às pessoas para conseguir acesso”, ela mesma respondeu. “Quando as pessoas têm o acesso, em geral gostam do serviço utilizado, mas o gargalo do acesso nunca foi superado. Há falta de responsabilização pública em relação ao cidadão que vai buscar seu direito. Um direito só existe se pode ser exercido. Construímos a ideia do direito e uma prática de denegação, de insegurança da população, que não adere a esse sistema para defendê-lo por que não se sente protegida”.
A universalização não necessariamente representa fortalecimento do sistema público de atenção. Ela pode se dar por meio de um mercado que só tem condição de crescer pela via do Estado (Sonia Fleury)
Sonia abordou, ainda, os movimentos pela universalização da saúde, destacando que estes não necessariamente caminham em uma mesma direção. “A Índia acaba de introduzir a universalização, por meio de um seguro que o governo vai dar para aquele mundo de gente. Todos estarão cobertos por um seguro privado, com custo alto. Há críticas de que não houve investimento nos postos de atenção à saúde para onde se dirige a população e de que isso está sendo revertido para o mercado privado”, relatou. “A universalização não necessariamente representa fortalecimento do sistema público de atenção. Ela pode se dar por meio de um mercado que só tem condição de crescer pela via do Estado, já que o seguro de saúde nos nossos países não atendem a mais do que 30% da população”.
Acesse o documento da Cepal Panorama social da América Latina
Aguarde a publicação da íntegra do debate aqui no blog do CEE-Fiocruz.